Eis uma boa notícia que se renova: o mercado cinematográfico e, em particular, os distribuidores independentes continuam a apostar em reposições de títulos clássicos, mais ou menos “antigos” - recorde-se o atual ciclo dedicado a Ingmar Bergman. Agora, com chancela da Nitrato Filmes, em cópia restaurada 4K, surge outro grande acontecimento deste verão: Underground, o filme com que Emir Kusturica, em 1995, arrebatou a sua segunda Palma de Ouro em Cannes - a primeira tinha sido conquistada em 1985, com O Pai Foi em Viagem de Negócios.Para o espectador mais desprevenido, valerá a pena referir que a “colagem” de Underground aos acontecimentos da Guerra da Bósnia faz algum sentido, mas não funciona como bandeira “simbólica” da narrativa de Kusturica. Claro que o calendário nos recorda um paralelismo que está longe de ser secundário: o filme foi revelado na Côte d’Azur em maio e, formalmente, a guerra terminou, poucos meses depois, com os Acordos de Dayton (assinados em Paris a 14 de dezembro de 1995). Seja como for, este é um objeto que, tal como O Pai Foi em Viagem de Negócios, nasce do misto de desencanto e desespero com que Kusturica contempla as convulsões da História que desemboca nos sangrentos conflitos de 1992-1995.Se há uma “chave” para situarmos historicamente a ação de Underground, ela está, como é óbvio, nas palavras proferidas por Ivan Dren (Slavko Stimak) perto do final. Dir-se-ia um compromisso poético entre os sonhos individuais e os pesadelos muito reais da história coletiva: “Era uma vez um país…” - são, aliás, as palavras que servem de subtítulo a Underground. Que é como quem diz: “Era uma vez a Jugoslávia…”Tudo começa com o pai de Ivan, Marko Dren (Miki Manojlovic) e o seu amigo Petar Popara (Lazar Ristovski). Conhecemo-los em abril de 1941, quando Belgrado, então capital da Jugoslávia, começa a ser bombardeada pelos alemães… É o capítulo zero de uma avalanche de acontecimentos fortemente marcados pela Segunda Guerra Mundial, depois envolvendo a consolidação do poder de Josip Broz Tito, a Guerra Fria e, por fim, os conflitos iniciados em 1992. Sem esquecer que há personagens que, ainda em 1941, se refugiam num subterrâneo (é esse o sentido mais imediato do título), atraindo uma ironia perturbante: muitos anos depois, quando abandonam o esconderijo, aquilo que encontram está mesmo a acontecer, ou é um artifício… cinematográfico?.História & fábula.A noção de “fresco histórico” poderá resumir a ação de Underground, mas de modo francamente insuficiente. Estamos perante um filme de rara contundência formal em que o realismo (histórico) se transfigura, momento a momento, cena a cena, numa vertigem surreal a que todos pertencem e, em boa verdade, ninguém controla.Logo em Cannes, em 1995, isso levou alguns a classificar a realização de Kusturica como “felliniana”. Será uma maneira sugestiva de sublinhar a sua dimensão onírica - veja-se, por exemplo, o modo como o Jardim Zoológico de Belgrado emerge como um cenário operático, alheio a qualquer naturalismo. O certo é que o delírio figurativo de Federico Fellini está sempre ligado a qualquer coisa de secreto e intimista; no caso de Kusturica, é a própria história coletiva que agride as personagens com os seus excessos, pervertendo qualquer intimismo.Kusturica é o retratista de um mundo cujo mapa se perdeu, algures, nas guerras que ferem a história. No limite, só será possível conferir alguma lógica a essa história procurando os prazeres perdidos da fábula: “Era uma vez…”