Antes do regresso ao grande ecrã, apontado para dezembro, no filme Babygirl, que lhe valeu o prémio de melhor atriz na recente edição do Festival de Veneza, Nicole Kidman despede-se do verão em modo televisivo – e nós com ela. Habituada a ser a presença forte das séries em que vai entrando, com extrema regularidade, no novo sucesso da Netflix, O Casal Perfeito, não se foge à regra: Kidman é a pose de comando onde tudo começa e acaba neste policial com intriga à beira-mar e acidez de classe a gerar um desassossego luminoso. Até porque a sua personagem – matriarca de uma família abastada e romancista cujos livros se vendem como pãezinhos quentes no aeroporto – sinaliza o próprio teor da ficção. A saber, não estamos em terreno de escrita aguçada, como o foi The White Lotus, ou de processamento de um grande trauma, à maneira de Big Little Lies, mas ambas as referências bailam neste modelo de televisão pouco séria, que funciona particularmente pelo timing. .Adaptada de um romance de Elin Hilderbrand, precisamente uma autora de best-sellers que são autêntica literatura de praia, The Perfect Couple faz figura de delícia escapista, pouco antes de virarmos a página para o outono. O cenário é uma propriedade em Nantucket, com mansão e piscina nessa privilegiada zona litoral americana, onde os preparativos para o casamento de um dos filhos da dita romancista parece já ser a festa a acontecer... Na verdade, é um ensaio. Reunindo todas as personagens centrais (e são várias, ou não cheirasse a preparação para o “quem matou?”) num convívio mais ou menos plástico que permite identificar as rachas na simulada perfeição familiar, a série criada por Jenna Lamia monta aqui a tenda para o espetáculo policial que se segue. .Quer dizer, do organizador de casamentos à empregada doméstica, que adoram comentar o perfil matador dos ricos, passando por Dakota Fanning de sobrancelha levantada (esposa de um dos filhos da protagonista), um Liev Schreiber movido a charros (o irresponsável pai de família), uma Isabelle Adjani a assumir o boneco (amiga de longa data da família) e Eve Hewson a garantir o olhar menos caricatural da classe trabalhadora (essa talentosa filha de Bono Vox, que é a noiva deslocada), tudo se alinha no primeiro dos seis episódios, com a Lua a testemunhar o homicídio que vai ditar um conjunto de interrogatórios devidamente insinuantes. .Elogio do escapismo.Esta é daquelas séries que dependem da não revelação de pormenores, pelo risco de se estragar qualquer coisinha. Mas é também um esquema de ficção muitíssimo familiar, que optou pelo tom suculento em vez da sofisticação. Um aspeto, aliás, que tem sido tema de debate junto da crítica. Eis a dúvida: Lamia sabe o que está a fazer ou há comédia involuntária nesta proposta de policial? .Conforme se avança, fica por demais evidente que estamos perante um cálculo certo de escapismo (palavra muito apreciada, segundo consta, pela autora Hilderbrand), que não está interessado em inovar. Com um toque piroso aqui e ali, que intensifica o ar autoconsciente de “série baseada em literatura light”, O Casal Perfeito despe-se de quaisquer pretensões para ser apenas um prazer ligeiramente culpado, uma diversão em que o drama cheio de polpa funciona como veículo fácil para agarrar o espectador: não interessa tanto a corrente profunda que se insinua na superfície, mas sim o próprio mecanismo da superfície, em que as personagens só têm de passar a bola da desconfiança mútua, ou serem eficazes na cosmética das relações. .Outro contributo importante é o da realizadora Susanne Bier, que assina a totalidade dos episódios, tal como assinou The Undoing (2020), outra série em que Nicole Kidman enverga a pele da mulher privilegiada – a diferença passa por, desta vez, estar menos em apuros do que no controlo da situação. A sua postura de vigilância, e os sentimentos ariscos que suscita, fazem com que o mistério flutue, sempre num estilo leve de mojito na mão. .Se dúvidas houver, em entrevista ao site IndieWire a showrunner não deixou de sublinhar a sua genuína preocupação com o tom: “Acho que funciona. Eu diverti-me a assistir, mas é uma série que tem de te ensinar a vê-la, porque quando surge o nome de Susanne Bier, que realizou tão incrivelmente bem The Undoing e O Gerente da Noite, espera-se algo sério”. Para Jenna Lamia importa então perceber o espírito do genérico, ao som de Meghan Trainor: “Espero que esses créditos de abertura te digam para sentar e relaxar. Podes rir – espero que rias. Mas é um tom complicado de se conseguir...”.