Não temos necessidade de evocar o nome de Donald Trump cada vez que falamos de algum tema ligado ao presente dos EUA. Em todo o caso, convenhamos que, através das suas singularidades narrativas e memórias históricas, um filme tão excecional como O Brutalista não pode deixar de estabelecer algum curto-circuito simbólico com a América dos nossos dias.Entenda-se: são memórias cinematográficas e cinéfilas envolvendo uma dimensão épica como há algum tempo não víamos plasmada numa narrativa proveniente do outro lado do Atlântico. O filme realizado por Brady Corbet tem suscitado alguns curiosos paralelismos com o Megalopolis, de Francis Ford Coppola. Afinal de contas, para lá do desejo de utopia que os anima, ambos se centram em personagens de arquitetos: Cesar Catilina (Adam Driver) no filme de Coppola, László Tóth (Adrien Brody) em O Brutalista.. Cesar e László são movidos por um desejo de grandiosidade humana e figurativa que se exprime, justamente, nas formas arquitetónicas que inventam. Com uma diferença que está longe de ser secundária: a ação do filme de Coppola, projetada num futuro mais ou menos ambíguo, envolve um desejo utópico a tentar construir o tempo da sua afirmação; por sua vez, Corbet encena a saga de um homem, sobrevivente do Holocausto, cuja energia criativa é indissociável de um tempo concreto em que o impulso utópico envolve uma nova imaginação do tempo social.László é um judeu de origem húngara que, depois da Segunda Guerra Mundial, em 1947, espera encontrar provas palpáveis do Sonho Americano, tudo começando com “o enigma da chegada” (é esse o título da primeira parte do filme). A sua filiação na estética do brutalismo, consolidada a partir dos anos 50, define-o como um visionário que procura na austeridade dos materiais e das composições - da frieza do cimento à geometria das formas - as novas leis de um espaço humano capaz de reformular o valor primordial do humanismo.O filme de Corbet é tanto mais admirável quanto trabalha todos esses dados, não como a “teoria” de László, antes como um labirinto de ideias, pressentimentos e experiências que envolve todas as dimensões da vida humana, das celebrações públicas até à mais radical intimidade. Em boa verdade, o projeto que ele desenvolve para o magnata Van Buren (Guy Pearce) não é uma mera excentricidade arquitetónica, mas uma nova ideia de Cidade (com maiúscula, pois claro) em que as utopias sejam, não uma miragem, mas um regime existencial.A caminho dos ÓscaresNascido em Scottsdale, Arizona, em 1988, Brady Corbet consegue reencontrar, com O Brutalista, o fulgor de uma herança narrativa e simbólica transversal à história de Hollywood, em particular ao período das “superproduções” da década de 1960 em que surgiram títulos como Lawrence da Arábia ou Doutor Jivago (ambos de David Lean). Não se trata de inventariar “semelhanças”, mas sim de reconhecer a persistência de uma dinâmica realista capaz de desembocar numa vertigem épica, porventura fantástica. Aí reencontramos um dispositivo fulcral na história do cinema de Hollywood e, afinal, do próprio imaginário “made in USA”. A saber: as relações tensas, por certo intensas, entre o turbilhão da vontade individual e o movimento dos valores coletivos.Tudo isso acontece no interior de um riquíssimo processo criativo: a luz da direção fotográfica do inglês Lol Crawley é, por si só, um acontecimento cinematográfico de raro esplendor. Sem esquecer, claro, a composição de László por Adrien Brody, detentor de um Óscar pela sua composição num filme admirável da mesma família narrativa assinado por Roman Polanski (O Pianista, 2002). É uma aposta segura dizer que, hoje mesmo, com a divulgação das nomeações da Academia de Hollywood, vamos encontrar o seu nome na lista dos candidatos ao Óscar de melhor ator da produção de 2024..'Banzo' - Fantasmas do colonialismo.'De Volta à Ação' - Espiões em segunda mão