O 25 de abril de Tiago R. Santos
Exploração impiedosa mas lúdica de um mal-estar português. Em Revolta, estreia na realização de Tiago R. Santos, argumentista de uma fase de António-Pedro Vasconcelos mas também antigo crítico de cinema da Sábado, estamos numa Lisboa de distopia numa altura de revolta social e de praga de uma pandemia. Acima de tudo, neste jantar de dois casais entre os trinta e os quarenta, propõe-se um espelho de uma demografia do português instalado. Dois homens e duas mulheres que num serão expõem segredos, mágoas e desespero, podem ser pontos de validação com uma ideia de português não suave. Ricardo Pereira é o publicitário bem na vida mas frustrado, Teresa Tavares, a esposa, alguém consumida com o fardo da maternidade, enquanto que Margarida Vila-Nova é a "solteira" que prefere viajar e Cristovão Campos, um divorciado com neuras acentuada, a tentar ser "positivo".
São quatro adultos prestes a explodir num jantar que era para ser simpático. Falam, bebem, discutem, bebem e prosseguem a revelar surpresas que nesta hora e meia nunca permitem respirar fundo. Mesmo com todos os truques de algibeira de argumentista (e Tiago R. Santos, apesar de filmar com ideias de cineasta, nunca esconde que este é um filme de argumentista), Revolta nunca se vai abaixo e mantém um ritmo bem aceitável, sobretudo porque sabiamente tem sempre o bom senso de nunca ir para a rua - tudo se passa no mesmo décor, um apartamento benzoca de Lisboa. A revolução, lá fora, ouve-se através de disparos, cânticos e muito barulho. A gritaria e os diálogos acesos por vezes parecem não ter a credibilidade necessária mas há um humor negro e crítico que disfarça tudo. Um humor mas igualmente uma tensão que às vezes tem mesmo de ser exasperante - fica o aviso que não são propriamente personagens patuscas ou fáceis de gostar. São pessoas que parecem animais furiosos fechados numa gaiola. Adultos que se portam mal mas que não escondem o seu medo por esta espécie de 25 de Abril de novo século.
Entre a sinalização de um objeto de puro entretenimento, talvez a fazer lembrar Amigos, Amigos, Telemóveis à Parte (também sobre um jantar de amigos num único décor), de Paolo Genovese , e a dramaturgia de uma peça de teatro ao gosto burguês, o filme vive também muito da energia dos seus atores, em especial do rasto de perigo que o "desfoque" do registo de Margarida Vila-Nova traz. São atores em busca e à espera que resulte da sua força uma carnalidade tão interior como exterior.
Depois, há uma homenagem curiosa e divertida a John Carpenter, claramente numa difusão de subtexto mas com um jogo de perceções tão subtil como deliciosamente tonto, contando para isso com a magnífica música de Filipe Melo. Carpenter e a narração em forma de sedução de sexo oral. Enfim, brincar com Carpenter e sexo oral no mesmo filme é uma das muitas ousadias pequeninas de uma primeira obra que tem uma mensagem nada aconchegante: não vai ficar tudo bem. Esta angústia dos adultos mal comportados à beira de um fim do mundo (o fim de um Portugal cujo primeiro-ministro pede exílio e não lhe dão...) tem uma neura cuja génese é tão 2022...
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