Não sei se na terra natal de Pyotr Ilyich Tchaikovsky, Votkinsk, nessa República da Udmurtia que faz parte da Federação Russa, há ou não grifos, e o facto de o escudo udmurte ser dominado por um cisne branco de asas abertas não serve de grande pista. Mas o certo é que as imponentes aves de rapina fizeram questão de pairar em jeito de saudação sobre o castelo de Marvão quando este acolheu no final da tarde de sábado um concerto com obras do compositor russo. São momentos mágicos como este, associados a uma elevadíssima qualidade artística dos músicos participantes, que tornam único o Festival Internacional de Música de Marvão (FIMM), que termina no próximo domingo. Disse elevadíssima qualidade quando me referi aos músicos que Christoph Poppen e Juliane Banse, diretores artísticos do FIMM, convidam a vir tocar a Portugal todos os verões desde há uma década, mas elevadíssima é também a palavra certa para descrever a vila de Marvão, alcandorada numa montanha rochosa com mais de 800 metros.Já contei aqui no DN como o maestro Poppen e a soprano Banse, um casal de alemães, descobriu Marvão durante umas férias com os filhos em que percorriam Portugal de bicicleta. Ele de imediato (contou-me o próprio durante um almoço no Ninho das Águias, o restaurante da pousada da vila alentejana), ela depois de alguma hesitação (admitiu também a própria nessa conversa), apaixonaram-se por Marvão a ponto de comprar ali casa e espalharem de tal modo palavra sobre a óbvia magia do sítio que os amigos músicos sentiram tanta curiosidade que o resultado foi o FIMM. É, de facto, desde o primeiro momento um festival internacional, pelos músicos e pela audiência. Uma internacionalização que traz gente de longe, sobretudo da Europa, mas alguns até de mais longe ainda dos que os cinco mil quilómetros a que fica Votkinsk, onde em 1840 nasceu o autor de clássicos como O Quebra Nozes e O Lago Dos Cisnes ou a ópera Ievguêni Oniéguin.."Devo dizer que antes de conhecer a Juliane me apaixonava com muita frequência, mas nunca por um lugar".Entre os visitantes de fora, também há alguns de bem perto, vindos logo dali da Extremadura, como se pode comprovar pelo espanhol que se ouve falar por vezes no pátio do castelo, na própria Pousada de Marvão ou em restaurantes como o Fago. Afinal, fica só a meia hora de carro Valência de Alcântara, em cuja Igreja Rocamador se deu no final do século XV a boda real entre D. Manuel I e Isabel, filha dos Reis Católicos. De Tchaikovsky ouviu-se no castelo o Quarteto de Cordas n.º 3 em mi bemol menor, Op. 30, pelo Malion Quartett, composto por Alex Jussow (violino), Miki Nagahara (violino), Lilya Tymchyshyn (viola) e Bettina Kessler (violoncelo). Depois foi a vez de se interpretar Trio para Piano em lá menor, Op. 50, por Samson Tsoy (piano), Kevin Zhu (violino) e Bruno Phillippe (violoncelo). A fechar, Souvenir de Florence, Op. 70, pelo Malion Quartett e ainda Nicolas Garrigues (viola) e Aurélien Pascal (violoncelo). Duas horas ao todo.Confesso que gostei. E muito. Como creio que foi o sentimento geral na assistência, todos tocados pela genialidade do compositor russo. Mas humildemente cito aqui a opinião conhecedora de Alberto Mattioli, jornalista e escritor italiano, que este ano veio à descoberta de Marvão: “Um concerto muito bonito, embora demasiado longo. O Quarteto teve alguns problemas de afinação, como acontece frequentemente nos concertos ao ar livre. O Trio foi o ponto alto da noite; o Sexteto esteve muito bonito, mas não ao mesmo nível.”Sobre o que foi vendo e sobretudo ouvindo na vila, recordo ainda Matiolli dizer que “este festival tem também o mérito de se realizar num local muito tranquilo. É um paradoxo, mas no barulho de hoje, precisamos de silêncio para apreciar verdadeiramente a música”. Considera que “o nível dos instrumentistas é, em média, muito elevado, e a construção de programas monográficos, centrados num único compositor, comparando frequentemente música vocal e instrumental, é louvável”. E conclui, poético, referindo-se ao concerto inicial do FIMM: “Nunca imaginei ouvir A Truta de Schubert no pátio de um castelo árabe suspenso sobre um belo nada.” A gala de abertura deu-se na sexta-feira, dia 18, com obras de Franz Schubert, Johannes Brahms e Robert Schumann. Este fim de semana que se aproxima é o de encerramento, com a gala final no domingo, 27, no pátio do castelo. Ouvir-se-ão desde obras de Félix Mendelssohn-Bartholdy a Pauline Viardot, passando por Astor Piazzolla ou Gioachino Rossini. E está prevista a visita do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que nos últimos anos tem trazido a Marvão, como convidados, os membros do corpo diplomático acreditado em Lisboa. Vários embaixadores já me confessaram a dupla surpresa sentida: com a qualidade artística do festival e com a beleza de Marvão. . Há um ano escrevi sobre a 10.ª edição do FIMM. E o título, com referência à opera de Wolfgang Amadeus Mozart a que assisti no primeiro dia do festival, foi “Até um grifo veio ver no castelo de Marvão O Rapto do Serralho.” Não estava à espera desta vez de ver não um, nem dois ou três, mas quatro grifos, impressionantes pela amplitude das asas. Marvão surpreende..Até um grifo veio ver no castelo de Marvão 'O Rapto do Serralho'