“Não há nada melhor que a experiência cinematográfica. Mas pode acontecer em qualquer lado. Até num iPad”
Foto: Leonardo Negrão

“Não há nada melhor que a experiência cinematográfica. Mas pode acontecer em qualquer lado. Até num iPad”

Em Lisboa para o Outsiders, o realizador Paull Harrill falou da dificuldade de fazer cinema regional, da vitória de Anora nos Óscares e do desafio de captar a atenção na era do streaming.
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Esteve em Lisboa para participar no Outsiders - Ciclo de Cinema Independente Americano onde apresentou os seus filmes Light from Light e Something, Anything. Ambos têm um lado espiritual, é um aspeto da vida que inspira o seu trabalho?

Por onde começar? Se calhar devia só dizer que “sim!” [risos]. Estou interessado em contar histórias que deem ao público a oportunidade de sentir algo, mas também algo em que pensar depois do filme acabar. São essas as questões que me interessam e, por isso, são essas as questões que estou a colocar ao público.

Também tem a ver com a sua infância, tendo sido criado na igreja episcopal? Foi por isso que escolheu Light from Light [Luz da Luz], uma frase do Credo Niceno, para título do seu filme?

Fui de facto criado na igreja episcopal. A minha mãe levava-me, a mim e à minha irmã, à missa da igreja episcopal todos os domingos, durante toda a minha infância. Não pratico essa religião, mas ela moldou-me como pessoa. Quando estava à procura de um título para o filme, sabia que uma boa parte ia ser filmada à noite, mas que no final, de repente, havia umas explosões de luz solar. Essa expressão surgiu-me porque o filme lida com questões espirituais e mistério. Sempre achei essa expressão muito misteriosa, Light from Light. O que é que significa? Gosto de títulos que nos fazem colocar essa questão. Foi assim que surgiu.

É um filme com um certo mistério, uma dose de paranormal. Mas já sei que não gosta de dizer que é um filme de fantasmas…

Pelo menos não diria que é um filme de terror. Mas diria que é uma espécie de história de fantasmas, porque é sobre a questão do que acreditamos que acontece depois de morrermos, e se há fantasmas ou não, como podemos ser assombrados por coisas. A esse nível, é uma história de fantasmas, mas não é de todo um filme de terror. Quando estreámos o filme no Festival de Cinema de Sundance, apresentei-o e disse apenas que não se tratava de um filme de terror. Não queria que as pessoas ficassem desiludidas. Tive de limitar as expectativas.

Disse em várias entrevistas que o seu lema é “escreve sobre o que conheces”. É por essa razão que os seus filmes se passam no Tennessee, sendo o Paul de Knoxville, onde ainda vive?

Sim, e escrever o que se sabe não significa necessariamente… Os escritores, tenho a certeza, em todo o mundo recebem esse tipo de instruções. Não significa que se tenha de escrever algo autobiográfico. Não tenho experiência com fantasmas, mas é sobre escrever o que conhecemos emocionalmente, o que sentimos e sabemos no nosso coração. E, nesse sentido, ambos os filmes são muito pessoais. E baseiam-se em coisas que eu conheço. Parte disso é o sítio onde se passam. E situá-los no Tennessee Oriental, que é onde cresci e onde vivo, é como se me desse uma porta de entrada para falar de outras coisas que me interessam.

Quando pensamos em cinema americano aqui na Europa, pensamos inevitavelmente em Hollywood. Quais são as características que tornam o cinema regional diferente?

Há filmes que são feitos fora de Nova Iorque e Los Angeles. E até Hollywood os faz. E depois há o cinema regional, que são os cineastas que compreendem o que o cinema independente significa, que a promessa do cinema independente na América é a ideia de ser capaz de fazer histórias onde se vive, de fazer filmes onde se vive. E contar histórias sobre esse sítio. Portanto, é um cinema outsider, como este ciclo. Por isso adoro o conceito deste evento. É cinema oustider. Estes são filmes que são feitos normalmente, nem sempre, mas normalmente, fora das estruturas principais que existem para os filmes americanos.

Na última edição dos Óscares vimos Anora, um filme independente ganhar o óscar de Melhor Filme. Foi importante para o cinema independente este reconhecimento da Academia de Hollywood?

Sem dúvida. Tenho um enorme respeito por Sean Baker e pelo seu processo cinematográfico. E pela sua dedicação em fazer filmes que são intransigentes. O que é notável no sucesso deste novo filme é que não é muito diferente dos seus outros filmes. Que também são muito descomprometidos. E o facto de ter tido um sucesso generalizado, acho que é uma coisa muito boa para o cinema americano.

Voltando ao cinema regional, quais são os maiores desafios?

O dinheiro é sempre o maior desafio. E está relacionado com o casting, porque se está a tentar convencer os atores a saírem de casa e vir fazer um filme. Normalmente com muito menos recursos do que os filmes que estão habituados a fazer. Portanto, esses seriam os dois grandes desafios.

Cada vez mais pessoas têm acesso a milhares de séries e filmes através das plataformas de streaming. O Paul disse numa entrevista que não quer que os seus filmes façam parte dessa “cacofonia”. O que pensa desta multiplicidade de oferta e como é que o espectador pode lidar com ela?

Os desafios que enfrentamos como espectadores com todas essas escolhas é como quando vou a uma grande superfície comprar champô e há umas 5000 marcas de champô. Sinto-me esmagado. Então o que é que eu faço? Compro sempre o mesmo champô! Porque torna a escolha mais fácil. A forma como as artes enriquecem as nossas vidas é quando descobrimos coisas novas, coisas diferentes. Por isso pode ser esmagador ter todas estas escolhas. Porque a nossa inclinação pode ser escolher a mesma coisa a que estamos habituados. O que é confortável. É esse o desafio dos realizadores. Penso que muitos, se não todos, os cineastas que estão neste festival estão a tentar dar ao público algo diferente. E incentivá-lo a pensar numa ideia de uma forma diferente. Ou contar uma história de uma forma diferente. Ou fazer com que o público sinta algo que nunca sentiu antes. Estamos à procura de públicos que estejam dispostos a correr esses riscos. Para tentar algo diferente.

Foto: Leonardo Negrão

Mas a capacidade de atenção que temos quando vamos ao cinema ver um filme é diferente de quando o estamos a ver em casa e podemos parar, fazer uma pausa e ir fazer outra coisa. O streaming diminui a capacidade de reflexão do espectador?

Bem, sim. Mas em casa também podemos ter uma experiência maravilhosa a ver um filme. Uma das melhores experiências de ‘ir ao cinema’ que já tive foi sentar-me na cama com um iPad muito perto da minha cara e estar completamente… dentro do filme. Não há nada melhor para mim do que a experiência cinematográfica. Mas esta pode acontecer em qualquer lado. É uma questão de estarmos dispostos a dar toda a nossa atenção a algo. Porque é disso que se trata o cinema. É um contrato entre o realizador e o público: se me derem a vossa atenção, eu vou dar-vos algo em troca.

Quando faz um filme no Tennessee Oriental, está a mostrar uma parte da América diferente de Nova Iorque ou Los Angeles. É importante mostrar ao mundo os anseios, os sonhos, os desafios das pessoas que aí vivem?

Não sei se é importante para as pessoas, mas é importante para mim exprimi-lo. Chegamos a sentimentos universais e a questões universais sobre o que significa ser humano, através de histórias muito específicas. Através das pessoas que vivem num lugar. Essa especificidade é o que é importante. E é assim que se chega a esses temas maiores.

Dá aulas de cinema na Universidade do Tennessee em Knoxville. Que conselho dá aos seus alunos?

Todos eles têm sonhos e ambições muito diferentes. Os meus conselhos tendem a ser muito específicos para cada pessoa, porque são todos pessoas únicas. Uma coisa que lhes digo sempre antes de se formarem, na última aula que tenho com eles antes de se formarem, digo-lhes para todos os dias fazerem algo criativo. Porque podem vir a trabalhar em cinema, ou podem não trabalhar numa área criativa, podem acabar por escolher um caminho diferente, mas há um valor real em toda a gente em ser criativo de uma forma pequena todos os dias. Porque é restaurador. Esse é um conselho que lhes dou sempre.

Foto: Leonardo Negrão

Fala-se cada vez mais do aprofundamento das divisões na América. Vivendo em Knoxville, como é que se sente essa realidade?

Sente-se de formas diferentes. Atualmente, na América, tudo se tornou muito dividido. É quase como se houvesse duas equipas. Há a equipa vermelha [republicanos] e a equipa azul [democratas]. E a maioria das pessoas não é vermelha ou azul. É mais complicado do que isso. Cidades como Knoxville são bastante roxas. São compostas por uma mistura bastante boa de pessoas que se podem identificar como deste ou daquele lado. E pessoas que ocupam o meio. Com algumas ideias deste lado com as quais concordam e algumas ideias daquele lado com as quais concordam.

Estamos no entanto a falar de um estado vermelho...

Sim, o Tennessee é um estado vermelho. Não necessariamente Knoxville. Dentro do estado há cidades que são bastante azuis. Por isso, nunca é assim tão simples. A minha opinião pessoal é que é benéfico para as pessoas no poder que as coisas sejam simplificadas - que sejam azul ou vermelho. O poder do povo reside na rejeição de rótulos como esses.

A cultura não está a salvo destas guerras entre democratas e republicanos. Estamos a falar de proibição de livros, etc. Esta guerra cultural também se sente no meio do cinema?

Acho que estamos a ser desafiados nesta altura na América. Podemos concordar ou discordar de certa ideia. Mas depois há certas linhas que não devem, na minha opinião, ser ultrapassadas. E as pessoas que estão no poder neste momento estão a forçar essas linhas e a tentar ultrapassá-las em termos de restringir a liberdade de expressão, proibir livros, restringir a liberdade de imprensa. E é sobre essas coisas que temos de nos pronunciar. Ou esses direitos serão ainda mais reprimidos. Portanto, é uma altura preocupante.

Como perguntava há pouco, é algo que também se sente na indústria cinematográfica?

A forma como isto chega aos filmes é através do dinheiro. Começa com dinheiro, acaba com dinheiro. As perguntas são sempre: há um público para isto? E será que conseguimos recuperar o dinheiro? E o que significará se distribuirmos este filme que diz estas coisas? Mas há empresas, financiadores e outros que estão dispostos a correr riscos neste tipo de ambientes. E depois há aqueles que se afastam do risco.

Para terminar, algum novo projeto de que possa falar?

Tenho andado a escrever muito. Light From Light saiu mesmo antes da pandemia. E foi um período em que todos nós entrámos em hibernação. Por isso tenho escrito muito. As perspetivas nos EUA para os filmes independentes têm sido especialmente difíceis nos últimos anos por causa disso. E depois tivemos também as greves do SAG [o sindicato dos atores nos EUA] e a greve do sindicato dos argumentistas. Por isso, tem sido lento para mim arrancar com um novo projeto. Mas tenho um novo projeto. Sou muito supersticioso em falar sobre estas coisas. Mas tenho um novo projeto que escrevi e que espero realizar nos próximos 12 meses. E também tenho um novo projeto que escrevi para um amigo. E esperamos que esse projeto saia do papel muito em breve. Por isso, vou fazer figas.

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