No divã com Nicole Kidman
Produzida durante a pandemia de covid-19, a primeira temporada de Nine Perfect Strangers surgiu, em 2021, não só com o chamariz de ser a terceira parceria entre Nicole Kidman e o criador David E. Kelley (depois de Big Little Lies e The Undoing), mas sobretudo como uma forma de nos pôr a refletir, através da ficção, sobre a cultura terapêutica do bem-estar e respetivos métodos. Naquele momento de grande sintonia, por causa de um vírus global, tudo o que significasse ver pessoas à procura da afinação do corpo e da mente, ou de um detox de traumas, seria oportuno e empático; assim como o foram as férias para ricos criadas por Mike White na mesma altura (The White Lotus). Qual era então a fórmula da produção de David E. Kelley? Nove personagens, isoladas num resort, reuniam-se para um “protocolo” de limpeza de toxinas físicas e espirituais, sob a batuta da guru Masha Dmitrichenko. Ou seja, Nicole Kidman a brincar com um sotaque do Leste.
Agora em segunda temporada, de oito episódios, o thriller psicológico que partiu do best-seller homónimo de Liane Moriarty chega à Prime Video com o ímpeto de renovar o interesse nos métodos de Masha... Ou será mais um interesse na arte performativa de Kidman? Sobre isso, não há dúvidas de que a atriz australiana continua a trazer ao pequeno ecrã retratos femininos tão inteligentes quanto vulneráveis, tão crus quanto ambíguos, sempre com um brilhozinho nos olhos, e um sorriso que pode esconder múltiplas camadas.
Desta feita, trocando-se a estação quente e os ares da natureza pela paisagem nevada de um lugar chamado Zauberwald, nos Alpes austríacos, Nine Perfect Strangers muda também a sua paleta de cores para um registo mais acinzentado – embora isso não torne a temporada necessariamente mais sinistra do que a primeira. E, em vez de um resort, é num antigo sanatório, transformado em clínica de bem-estar pela mentora de Masha, Helena (Lena Olin), que se vão encontrar as nove figuras angariadas para a terapia psicadélica, cujas práticas não convencionais se mantêm fiéis à filosofia de risco da sua líder. Com um detalhe: o dito protocolo será aplicado pelo assistente de Masha, filho da proprietária da clínica, que não terá a vida facilitada.
Nove (quase) perfeitos conhecidos
Assim como o elenco do primeiro capítulo trazia prestígio à série, também esta nova sessão de grupo tem caras conhecidas. A começar por Christine Baranski, um dos rostos mais fiáveis da ficção televisiva (The Good Fight, The Gilded Age), que interpreta uma dama chique acompanhada de um homem mais novo, e a acabar em Murray Bartlett, o ator que sobressaiu na primeira temporada de The White Lotus (para além de um episódio especialíssimo de The Last of Us), vestindo aqui a pele de um marionetista, ex-apresentador de um programa infantil, que foi cancelado depois de um ataque de raiva no set.
Há ainda a filha ressentida da tal dama chique (Annie Murphy, de Schitt’s Creek), uma ex-freira com reservas pesadas de culpa católica (Dolly de Leon), uma pianista prodigiosa (papel da cantora King Princess, na sua estreia como atriz), que para ali foi levada pela namorada em busca de inspiração criativa, e um jovem abastado (Henry Golding, de Asiáticos Doidos e Ricos) à espera do pai (Mark Strong), um empresário milionário que pode muito bem ser uma das personagens-chave do encontro urdido por Masha...
Esta renovação do elenco traduz igualmente a vontade de uma série de antologia, sem necessidade perentória de se conhecer a temporada anterior. Mas tem esse projeto pernas para andar? Digamos que o mistério que se sentiu da primeira vez já não volta. É certo que Nicole Kidman é excelente a manter a postura da guru de Nine Perfect Strangers numa zona moralmente vaga, e por isso sempre disponível para torcer o significado das suas ações, mas não há grande novidade a extrair daqui. Apenas episódios mais elaborados na representação dos efeitos psicadélicos – que resultam, por exemplo, das experiências de Masha com os sinais vitais de quem se deita no seu divã –, e mais focados na noção de que tudo isto é um negócio. Mesmo que de alguma maneira resulte.
“Tecnologia” e “guerra" são também palavras que ganham peso até ao fim da temporada, picando o ponto com relativa eficácia. Ainda assim, o insuflar da história com questões que dão escala à dor individual não resolve a moleza do argumento. Mais banhos em água com temperatura negativa e caminhadas de pés descalços no gelo, por favor.