Eis uma verdade rudimentar que qualquer frequentador de Cannes rapidamente aprende: não é humanamente possível acompanhar a oferta de títulos de todas as secções do festival... a não ser que alguém tenha o dom da ubiquidade para assistir a dez ou quinze filmes por dia. “Tout va bien”: estamos perante uma montra de matéria vital para os próximos doze meses do mercado global.Tal oferta faz parte de um evento desta dimensão e só valoriza a sua estratégia. Em todo o caso, este ano, a situação complicou-se. Havendo mais de 4000 jornalistas a acompanhar o festival, qual a lógica de projetar um determinado filme numa única sessão de imprensa, numa sala com 452 lugares? Exemplo? O novíssimo Highest 2 Lowest, de Spike Lee... O mesmo aconteceu, aliás com as primeiras longas-metragens de Kristen Stewart e Scarlett Johansson.Enfim, não nos queixemos (bem pelo contrário...) de tudo aquilo que tem sido possível descobrir para lá da lista dos 22 títulos que concorrem para a Palma de Ouro. Celebremos, por isso, nas ante-estreias (“Cannes Première”), a passagem de O Desaparecimento de Josef Mengele, tendo como base o romance homónimo de Olivier Guez (Prémio Renaudot 2017), já adaptado em formato de novela gráfica (recentemente lançada no mercado português). Realizado pelo russo Kirill Serebrennikov, é mais um exemplo do cruzamento financeiro de muitas produções actuais, neste caso com participações de Alemanha, França, Reino Unido e Espanha.O médico e oficial nazi Josef Mengele (1911-1979) entrou na história do Holocausto com o cognome de “anjo da morte”, devido às terríveis experiências que fez e coordenou com prisioneiros do campo de concentração de Auschwitz. No filme, o tempo da Segunda Guerra Mundial está presente através de algumas perturbantes memórias, mas o essencial acontece a partir do começo da década de 1950, com Mengele (interpretado pelo excelente August Diehl) em fuga, regressando por um breve período à Alemanha, para depois viver na Argentina e no Brasil.Para Serebrennikov, os destinos individuais e coletivos encontram-se sempre enredados numa vertigem de factos e fantasmas — recorde-se o exemplo de A Mulher de Tchaikovsky (2022). Daí que ele filme Mengele como um ser assombrado, tocado pela impossibilidade de qualquer redenção, sem deixar de ser um espelho perverso do próprio contexto em que foi ator e cúmplice. Esperemos que o filme possa chegar ao mercado português, já que se trata de uma complexa abordagem biográfica, evitando os maniqueísmos típicos de muitos telefilmes. Serebrennikov trata a memória histórica como um território em que o registo das grandes convulsões não anula, antes potencia, o radicalismo dos detalhes psicológicos e emocionais.Teatro e cinemaUma ironia bizarra envolve outro título da competição: The History of Sound, de Oliver Hermanus, possui as marcas, e também a banalidade, de um telefilme dito de “reconstituição histórica”, mas terá, por certo, uma difusão muito mais alargada, já que surge com a chancela de um grande estúdio americano (Universal). Registe-se apenas que a história de dois jovens investigadores (Paul Mescal e Josh O’Connor) que, no começo do século XX, recolhem canções da tradição folk no estado do Maine continha elementos sugestivos que justificavam algo mais do que o tratamento rotineiro que prevaleceu.Entretanto, o cineasta norueguês Joachim Trier está de regresso a Cannes, depois de ter encontrado no festival uma importante plataforma de promoção internacional — aconteceu em 2021, com A Pior Pessoa do Mundo, filme que contribuiu para uma maior visibilidade de Renate Reinsve, também nascida na Noruega, atriz obviamente filiada numa riquíssima tradição (de palco, antes do mais) dos países escandinavos. . Realizador e atriz voltam a colaborar em Sentimental Value, objeto especialmente curioso pelo modo como nele se cruzam factos e sensibilidades de teatro e cinema — simplificando, digamos que este é o retrato atribulado de uma família cujo pai (Stellan Skarsgård), um cineasta consagrado, tenta convencer a filha (Reinsve) a protagonizar o seu próximo filme, encontrando resistências que, muito para lá das questões profissionais, envolvem traumas familiares... Trier não evita alguns tiques maneiristas do seu “estilo”, mas não é todos os dias que encontramos um filme com um tão sólido elenco em que também está, por exemplo, a americana Elle Fanning.. Jafar Panahi assina um dos grandes filmes de Cannes .Cannes celebra o cinema do Brasil