Nélida Piñon, um coração ibero-americano

Morreu em Lisboa, no sábado passado, a escritora brasileira Nélida Piñon. Deixa uma obra literária de grande importância, feita de muito trabalho linguístico, imaginação ​​​​​​​e a curiosidade sem fim de um coração andarilho.

Nélida Piñon amava o nosso país, não apenas por ser brasileira, mas sobretudo por ter grande apego às suas raízes galegas e à ligação afetiva a Portugal, frequentemente associada a essa condição. Disse-mo pessoalmente, no final do século passado, quando a entrevistei para o JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, a propósito do lançamento entre nós do romance A República dos Sonhos, onde a escritora contou a saga de Madruga, jovem camponês que deixa a Galiza natal para embarcar num navio com destino ao Brasil, esse eterno "país do futuro" (como lhe chamou o escritor Stefan Zweig), tendo ao lado o seu amigo Venâncio. Por causa dessa ligação ibérica, em junho último o Instituto Cervantes do Rio de Janeiro atribuiu o nome de Nélida à sua biblioteca, que passou também a acolher boa parte do espólio da escritora, com mais de sete mil peças. Cidadã do mundo, Nélida Piñon, que morreu este sábado em Lisboa, onde passou os últimos meses, tornou-se assim a primeira autora de língua não-espanhola a dar nome a uma biblioteca do Instituto Cervantes, organismo homólogo do nosso Instituto Camões que tem por missão promover o ensino da língua espanhola no mundo.

Nascida a 3 de maio de 1937 no Rio de Janeiro, era filha de Lino Piñón Muíños e Olivia Carmen Cuíñas Morgado, originários de Cotobade, província de Pontevedra, e recebeu o nome de Nélida como anagrama do nome do avô materno, Daniel Cuiñas Cuiñas. Em 1957, licenciou-se em Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pouco depois começaria a trabalhar como correspondente nas revistas Mundo Nuevo e Cadernos Brasileiros. Estrear-se-ia na literatura com a novela Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, publicada em 1961. Desta época são ainda os livros de contos Tempo das frutas (1966) ou Sala de armas (1973) e as novelas O Fundador (1969) ou A casa da paixão (1972). Muito jovem ainda, foi assumindo a direção de diversas instituições relacionadas com a atividade literária, como o Laboratório de Criação Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1970), a Divisão Cultural do Departamento de Cultura do Estado do Rio de Janeiro ou a Associação de Amigos da Casa da Cultura Laura Alvim (1987). Também foi vice-presidente do Sindicato de Escritores da sua cidade.

Não admira, pois, que cedo tenha atraído as atenções de nomes maiores da literatura brasileira, como Clarice Lispector, que em 1970 lhe fez uma entrevista para o Jornal do Brasil que começa assim: "Há oito anos, uma moça chamada Nélida Piñon, descendente muito brasileira de espanhóis, iniciava sua carreira literária com um livro dificílimo de ler: Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo. Sem nenhuma concessão ao leitor, o livro, para a maioria, era ininteligível. Ainda na mesma linha publicou, em 1963, Madeira feita cruz. E três anos depois o livro de contos Tempo das frutas, este já bem mais realizado, com ótimos contos. O seu romance O Fundador ganhou um prémio especial no Concurso Nacional Walmap e aparecerá, pela Editora José Álvaro, na segunda quinzena de novembro. Continua escrevendo: tem prontos um livro de contos e uma peça de teatro. Tudo escrito num estilo muito especial, muito "nélida piñon". Enquanto isso, dirige o primeiro laboratório de criação literária no Brasil, na Faculdade de Letras do Rio de Janeiro, cargo que lhe assenta perfeitamente: só poderia ser ministrado realmente por alguém com a inteligência criadora de Nélida."

Na sua vasta bibliografia destacam-se os romances Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo (1961), Madeira feita de cruz (1963), O Fundador (1969), A casa da paixão (1972), Tebas do meu coração (1974), A república dos sonhos (1984), A doce canção de Caetana (1987), Cortejo do Divino e outros contos escolhidos (2001), Vozes do deserto (2004) e Um dia chegarei a Sagres (2020). Também publicou os ensaios Aprendiz de Homero e Filhos da América, memórias como Coração Andarilho, Livro das Horas, Uma furtiva lágrima. Estas obras encontram-se publicadas em mais de 30 países. Recebeu diversos prémios e distinções, destacando-se os prémios Juan Rulfo (México), Menéndez Pelayo (Espanha), Vergílio Ferreira (Portugal), Jorge Isaacs (Colômbia), e Jabuti (Brasil). Em 2005 foi distinguida com o Prémio Príncipe de Astúrias pelo conjunto da obra, sendo o primeiro autor de língua portuguesa a receber essa distinção, embora lhe tenha faltado o Prémio Camões, o maior e mais importante em língua portuguesa. Foram-lhe ainda entregues diversos títulos de doutor honoris causa, entre eles o da Universidade de Poitiers (França), Universidade de Montreal (Canadá), UNAM (México), Universidade de Santiago de Compostela (Espanha) e Rutgers (EUA). Foi catedrática da Universidade de Miami e professora convidada das Universidades de Harvard, Columbia, Johns Hopkins e Georgetown, entre outras. Em 2012 foi nomeada embaixadora Ibero-Americana de Cultura.

No seu país fez história ao tornar-se, em 1996, a primeira mulher, em 100 anos, a presidir à Academia Brasileira de Letras, no ano do seu I Centenário. A esse propósito dizia ao DN, numa entrevista de 2010: "Estou há 20 anos na Academia, mas sempre cumprimento o busto de Machado de Assis. Olho-o e digo: "como vai o senhor?" Com o maior respeito. Nunca o tratei por você. Nunca tuteei Machado de Assis. E para mim ele é uma emoção permanente." Mas não abdicava da leveza, por assim dizer banal, do quotidiano, como dizia na mesma entrevista: "Não fico pensando nisso todo o tempo. Isso me dá uma leveza para continuar conversando com todo o mundo na rua, bater papo com os meus porteiros, conversar com a minha empregada. É um intercâmbio permanente, isso me impede de pensar que seria possível viver numa torre de marfim. Se eu começar a me autoentronizar, estou perdida."

Acreditava no poder da imaginação e admitia que esta dominara a sua vida desde criança. Mas o trabalho árduo sobre a linguagem era essencial para ela, como afirmava na referida entrevista a Clarice Lispector: "Tenho paixão pela palavra e também a suspeita de que a palavra me inspira; como ela é insidiosa, traiçoeira, ela induz você ao erro, à vaidade; você está crente que está dominando a frase, a palavra, a semântica, a sintaxe, que seja, e de repente sai tudo arrumadinho, mas uma bobagem, não tem a menor transcendência." O seu texto tem que ter uma transcendência, não cósmica, mas uma transcendência da sua vocação poética. Por isso, ao mito da inspiração preferia o esforço: "Inspiração era meu recurso de adolescente. Fase adulta exige outro confronto. E como a natureza não me tornou instrumento de Deus, habituei-me a avançar pesadamente no mundo escuro de um texto até descobrir a primeira luz."

Envolvida em várias lutas cívicas, entre as quais as relacionadas com a igualdade de género, nunca cedeu à facilidade do politicamente correto. No ano passado, em entrevista à revista Visão, admitia que o seu livro Um dia chegarei a Sagres nascia da admiração pelo "espírito audacioso do Infante D. Henrique" e confessava o seu desinteresse por revisionismos históricos: "Esse debate não me pertence. Sabe porquê? Não pertence a ninguém, está fora de tempo. Era a época que havia a viver. É como se nós agora começássemos a pensar em retificar o passado, ajoelhar, pedir perdão... Podemos? Não, o mundo precisa é de saber o que aconteceu e não voltar a repeti-lo."

Do avô materno, o Daniel que, por enviesado caminho, lhe inspirou o nome, dizia ter herdado, como referiu em entrevista a Carlos Haag (revista FAPESP, 2010), "o gosto da aventura" e a necessidade de instalar-se numa terra que lhe ofertasse horizontes mais amplos. E acrescentava: "Sempre quis ser uma peregrina, andando pelo mundo; as geografias para mim nunca me assustaram."

Fiel a essa natureza, a escritora, que tinha 85 anos, estava em Portugal desde setembro. Em Lisboa participou nas comemorações do centenário de José Saramago, seu amigo próximo, como jurada do prémio que leva o nome do escritor e que é um dos mais importantes da literatura de língua portuguesa. Depois viajou pelo país, foi à ancestral Galiza, fez uma conferência em Santiago de Compostela e visitou Barcelona. Segundo o jornal Correio Braziliense, fora sujeita a uma intervenção cirúrgica já este mês e complicações surgidas na fase pós-operatória ditaram o desenlace. O coração andarilho parou na mesma margem do Atlântico onde, para os seus, tudo começou há mais de um século.

dnot@dn.pt

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