Natal em tom musical (e não só)

A véspera e o dia de Natal pedem convívio no sofá e olhos postos no televisor. O que ver? Há várias alternativas aos "discos riscados"<em> Sozinho em Casa</em>, <em>Música no Coração</em> e <em>O Amor Acontece</em>, títulos que cumprem devidamente a tradição mas já não acrescentam nada. Para mudar o <em>chip</em>, <em>Matilda de Roald Dahl: O Musical</em> é a grande proposta que chega amanhã à Netflix.
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Tão refrescante que é reencontrar aquele tipo de cinema colorido, alegre, com imaginação a rebentar pelas costuras e traço grotesco, que não pede licença a ninguém para... encantar. Matilda de Roald Dahl: O Musical, adaptado pelo encenador Matthew Warchus, que assinou a mesma versão primeiro em palco, tem essa desfaçatez garrida para dar e vender. É a história da menina prodígio negligenciada pelos pais, que antes de saber o que é a escola já leu Herman Melville e Dostoiévski, resolvendo até equações com uma perna às costas. O seu principal poder é a telecinesia, mas não há nada que se compare com as narrativas que fervilham na sua mente dotada - as quais, como que por magia, vão encontrar correspondência no mundo real de que tanto quer fugir.

A escola acaba por se tornar o centro de tudo. Uma instituição sombria, com uma estátua de estilo soviético à entrada do pátio em representação gloriosa da própria diretora, a terrível Senhora Trunchbull, ex-lançadora de martelo (que agora é, de modo literal, lançadora de crianças), cuja ocupação diária consiste em vigiar cada aluno para, ao mínimo deslize, aplicar o pior dos castigos. Emma Thompson, que assume essa personagem-monstro, é absolutamente genial na linguagem física vilanesca, envergando um fato de gordura que começou por provocar um pequeno escândalo nas redes sociais, antes mesmo de se conhecer o filme. Sem qualquer razão, entenda-se: o exagero caricatural é mais do que adequado ao jogo perverso da personagem, e para além disso Thompson impõe-se como um casting inquestionável.

Com canções que ficam no ouvido e coreografias que acentuam a natureza espetacular da proposta, Matilda de Roald Dahl: O Musical liga muito bem os contrastes. É doce e explosivo, adorável e malcriado em doses generosas, e não desperdiça nenhum dos seus atores nessa missão de tornar tudo alegremente exagerado. Ou seja, pura vitamina!

Sendo um filme familiar, atenção às crianças com estômagos mais sensíveis. Não falta aquela famosa cena que ilustra o género de castigo aplicado pela Senhora Trunchbull: um rapazinho que lhe roubou uma fatia de bolo de chocolate é obrigado a comer um bolo inteiro (de três andares) à frente dos colegas. O momento, concebido pela imaginação de Roald Dahl, já era um dos mais memoráveis da primeira adaptação de Matilda, de 1996, realizada por Danny DeVito, mas o que vemos aqui é de uma ordem do horror espantoso, que a energia musical resolve sem esforço, para não deixar pesadelos...

Numa história de trevas, há sempre um recanto de luz. Matilda encontra-o na professora Honey (Lashana Lynch), a figura amável que abre caminho para o seu talento florescer. E não há nada mais tónico para o coração do espectador do que testemunhar o encontro entre duas personagens que se reconhecem uma na outra. Isso e uma grande farra de crianças felizes.

Outras sugestões...

Já que estamos no tema do musical, eis um clássico britânico bastante esquecido. Oliver! (1968), de Carol Reed, é a exuberante e graciosa versão musical de um dos mais amados romances de Charles Dickens: Oliver Twist. O ponto de exclamação no título podia dizer tudo sobre a proeza de ter ganho cinco Óscares da Academia, incluindo melhor filme e realizador (havendo um sexto, honorário, para Onna White, responsável pela coreografia). Mas o que esse sinal gráfico traduz mesmo é o vigor de cada um dos números musicais que contam a história de Oliver, desde o orfanato cinzentão à casa do carteirista Fagin (brilhante interpretação de Ron Moody), que ensina o seu bando de rapazes a roubar com um passinho de dança e alguns truques "mágicos". Outro must familiar.

Geralmente, tudo o que sai dos estúdios de animação Aardman é de qualidade garantida, ainda mais se forem personagens criadas por Nick Park. Este pequeno filme prova-o em 30 minutos de caos fofinho. O que fazem as ovelhas na véspera de Natal? Bem, pelo menos as companheiras de Choné preparam a consoada com toda a lã e zelo... Até que a mais pequerrucha, deslumbrada e perdida, vai dar a um mercado de Natal, que por sua vez a leva a uma casa moderna, acabando resgatada por um trenó voador! Com pouco faz-se muito e de forma inteligente. O humor mudo da Ovelha Choné é uma lição para todas as animações contemporâneas que complicam aventuras simples. A mais sorridente meia hora em família está aqui (no canal Panda passa hoje, às 23h30).

Para boas vibrações não há nada como Licorice Pizza. Mergulhados na atmosfera dos anos 1970 em San Fernando Valley, Los Angeles, somos convidados a percorrer as ruas onde cresceu o seu realizador, Paul Thomas Anderson, aqui dominadas pela vitalidade de dois atores em estonteante revelação: Alana Haim e Cooper Hoffman (ela, cantora da banda Haim, ele, filho do grande Philip Seymour Hoffman). É o melhor filme do ano passado, para esta espectadora, e por razões que ultrapassam qualquer exigência narrativa. Vemos "apenas" um rapaz de 15 anos, com jeito para o negócio, a apaixonar-se por uma rapariga mais velha, meio perdida nos seus sonhos frustrados, e os dois a correrem livres e magnetizantes no labirinto da doçura nostálgica, ao som de David Bowie, etc. Não faz falta qualquer motivo natalício.

Se a ideia é um serão violento com recobro em jeito de lareira acesa, Cavaleiros da Justiça cumpre todos os requisitos. Mads Mikkelsen, de cabelo rapado e barba grisalha, está longe de ser um pai Natal afável, mas pelo menos chegará ao seu momento catártico a tempo da quadra. Ele é, na verdade, um homem durão, comandante militar que regressa a casa após a morte da mulher, para cuidar da filha adolescente. Uma morte que aconteceu num desastre de comboio, dentro de uma sequência de acasos que o realizador Anders Thomas Jensen nos expõe para chegar ao ponto crítico de uma vingança orquestrada por um conjunto de personagens emocionalmente frágeis e algo burlescas... É uma terapia de grupo tão absurda quanto admirável, que transforma a violência em ternura, através de uma escrita maluca, com coração grande. Cinema dinamarquês que merece o prémio de melhor filme não ortodoxo de Natal - é mesmo para essa noite que tudo se encaminha.

Neste fim de semana, o canal Fox Movies está a passar filmes de Jacques Tati, dos tardios Playtime e Trafic ao maravilhoso O Meu Tio (1958). Oportunidade preciosa não só para fazer um mini-ciclo Tati, mas sobretudo para (re)descobrir este hino aos prazeres anti-tecnológicos. Trata-se da primeira obra a cores do cineasta francês (Óscar de melhor filme estrangeiro), e é aquela que dá início à sua exploração do tema da modernidade formatada. Neste caso, o laboratório de curiosidades tecnológicas é a casa da irmã do Sr. Hulot, com todo um conceito de cozinha hi-tech que dá azo a uma das melhores cenas de atrapalhação do mestre comediante... O sobrinho, que obtém menos atenção dos pais do que os eletrodomésticos, pode sempre contar com esse tio Hulot, que o leva a sentir a liberdade num passeio de bicicleta.

Assumindo um registo puramente cinéfilo, que bom será passar a noite de 25 na companhia de Bertrand Tavernier (1941-1921). Uma Viagem pelo Cinema Francês... está a anos-luz daquele tipo de documentário anódino que se limita a dar uma aula de História. É uma fascinante "viagem", como diz o título, que nos leva a experienciar uma paisagem de filmes e um tempo específico à boleia do discurso envolvente, rigoroso e nostálgico do crítico e realizador francês que foi uma das figuras mais apaixonadas pelo cinema. De Jacques Becker a Jean Renoir, passando por outros realizadores menos conhecidos, aqui está o belo encontro com um guardião da memória. O antídoto perfeito para um tempo de crise cinéfila, e um programa realmente reconfortante.

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