Napoleão redescoberto no grande ecrã
O primeiro grande acontecimento do 77.º Festival de Cannes veio de um passado remoto, mais exatamente da época do cinema mudo. Napoleão, o projeto monumental que o francês Abel Gance (1889-1981) concretizou em 1927, abriu a secção de Clássicos. A nostalgia está longe de esgotar o evento. Afinal de contas, não é todos os dias que deparamos com um filme com sete horas de duração! Mais do que isso: raras vezes a produção cinematográfica, quer na Europa, quer em Hollywood, assumiu esta ambição de ser um espetáculo total, dir-se-ia a meio caminho entre a grandiosidade do fresco histórico e as emoções do património operático.
Em Cannes foi projetada a primeira parte de Napoleão, da sua juventude até à campanha de Itália, com “apenas” 3h40 de duração. Estamos perante um complexo processo de restauro, da responsabilidade da Cinemateca Francesa, com o apoio do CNC (Centre National du Cinéma et de l’Image Animée), tanto mais demorado - dezasseis anos! - quanto não havia um negativo disponível que permitisse refazer de imediato a estrutura narrativa programada por Gance.
Foram utilizadas múltiplas bobinas, num total de 100 Km de película, provenientes das mais variadas origens, de Paris a Nova Iorque, passando pela Itália e Dinamarca. Ao mesmo tempo, a equipa de restauro, chefiada por Georges Mourier, pôde contar com um auxiliar precioso: a coleção de notas de montagem de Gance, conservadas na Biblioteca Nacional de França.
O impacto de Napoleão no nosso presente está longe de se esgotar na sua dimensão museológica (cuja importância, por si só, não será necessário sublinhar). A par de alguns dos seus mais brilhantes contemporâneos, incluindo David W. Griffith ou Sergei Eisenstein, respetivamente nos EUA e na URSS, Gance foi um dos grandes criadores da linguagem do cinema mudo, com métodos de encenação e experimentações visuais (por exemplo, o ecrã em tríptico de algumas sequências) que continuam a surpreender-nos. Em boa verdade, não é possível compreender a história do grande espetáculo sem passar por Gance e, muito em particular, pelo seu Napoleão.
A nova cópia restaurada vai ser objeto de variadas forma de difusão. Assim, o Festival de Cannes anunciou a realização de alguns cine-concertos durante o verão, a começar por um evento excecional, com as duas partes do filme, envolvendo 250 músicos na sala gigante de La Seine Musicale, em Paris (4 e 5 de julho). O filme passará também pelo Festival Radio France, em Montpellier, para depois ser mostrado, obviamente, na Cinemateca Francesa. Mais tarde será exibido em salas do circuito comercial francês, no pequeno ecrã (France Télévisions), chegando, por fim, à Netflix - esperemos que, de uma maneira ou de outra, Portugal possa vir a integrar este calendário.
João Lopes, em Cannes