Raras vezes o cinema (e não apenas o português) olhou a ciência nos olhos. Quase sempre, ela é a fonte espetacular ou sinistra da ficção que procura validar uma fantasia ou uma calamidade “para espectador ver”, mas os filmes desembaraçam-se da sua terminologia como quem despe o fardo pesado da explicação das coisas do mundo. Em sentido inverso, justamente, O Melhor dos Mundos – na expressão de Leibniz, referente ao mundo real – é um filme que vem apertar a mão à ciência e ouvir o que ela tem para nos dizer. Não com didatismos bacocos, mas com uma sensibilidade capaz de conter o discurso científico numa esfera humana, tornando-o próximo e legível. .Atrás da câmara, Rita Nunes conseguiu então encurtar a distância entre o espectador e o pioneirismo de um grupo de cientistas portugueses que está a trabalhar em novos cabos de comunicação submarinos, cujas inovações tendem para a possibilidade futura de deteção da atividade sísmica. Em vez do documentário, porém, escolheu a linguagem do drama realista, com jovens intérpretes de excelência – Sara Barros Leitão e Miguel Nunes – que agitam as águas antes de uma hipotética iminente catástrofe. À pergunta “e se um grande terramoto voltasse a acontecer em Lisboa?” (depois do de 1755), o filme, baseado nessa ideia de uma previsão cientificamente alicerçada, responde com a seriedade e adrenalina de um gabinete de crise – e que singularidade esta de assistir à febre de quem tem apenas horas para pesar na balança da urgência a ética e o princípio social. Pela lente de Rita Nunes, o mundo moderno é teoria e prática, nervo e emoção. .Tenho de começar pelo dia 26 de agosto: como é que sentiu os efeitos do sismo por parte de quem já conhecia o seu filme, inclusive depois da apresentação no IndieLisboa? Para mim foi uma espécie de segundo aniversário, porque de repente comecei a receber montes de mensagens e telefonemas! Estava a terminar as minhas férias, a pensar que ia ter um dia calmo, e não consegui... Não só a equipa que está a trabalhar comigo na distribuição ficou super entusiasmada, na ideia de antecipar a campanha, como houve muitas pessoas a ligar e a deixar mensagens, lá está, daquelas que já tinham visto o filme no IndieLisboa ou conheciam o tema tratado nele. Foi um dia interessante. (risos) .A realizadora Rita Nunes..Imagino que tenha também ficado surpreendida pela coincidência. Precisamente porque O Melhor dos Mundos anda à volta da possibilidade, ou não, de se prever um terramoto. Temos a ideia de que está sempre distante... Sim, a questão da proximidade é o ponto aqui: pode acontecer amanhã ou pode nem chegar a acontecer no nosso tempo de vida. Depois de trabalhar tanto tempo com os cientistas ligados a esta área, parece consensual que é mesmo imprevisível, isto de sabermos o quando. E de facto, o que aconteceu nesse dia 26 de agosto é apenas um pequeno simulacro, nada comparado com o que pode realmente vir a acontecer – esta premissa do que pode suceder em Lisboa não é de todo uma especulação, nem eu queria trazer para o filme um lado sensacionalista. Não me interessa o filme catástrofe, não me interessa explorar uma coisa pela vertente superficial... .Até porque este é um filme pré-catástrofe. Exato. Claro que, numa primeira camada, temos este tema muito concreto da possibilidade de um terramoto em Lisboa, ou em Portugal, mas a questão que me atraiu bastante também foi a dimensão mais universal de a humanidade viver num ambiente de pré-catástrofe generalizado. Porque a verdade é que estamos a viver tempos de pré-catástrofe: ainda agora com o que está a acontecer entre o Irão e Israel. Se calhar foi desde 2001, desde os ataques às Torres Gémeas, que voltaram tempos sombrios, e cada vez mais estranhos, depois de termos vivido tantos anos numa paz aparente. Vivemos agora sob os termos das alterações climáticas, das guerras que podem assumir uma escala mundial, catastrófica... Mais uma vez, não me interessa a catástrofe em si, mas esta atmosfera global. .Ficção científica pela via do realismo..Sendo esta uma ficção científica muito, muito subtil, o que é que a levou à afinidade com este “género”, ou contexto temático, tão pouco presentes no cinema português? Eu nunca pensei propriamente em fazer cinema de género – quando se fala em ficção científica é no sentido de este filme ser uma ficção ancorada numa premissa científica. Por aí, podemos designá-lo assim. Mas como realizadora não racionalizo o género: quis só fazer um filme sobre este tema, que já era um projeto muito antigo. Enfim, não tinha estes moldes, porque de facto, quando estava a desenvolver o guião, surgiu uma notícia – sobre os cabos submarinos e uma equipa de cientistas – que alterou a ideia inicial; mas esteve sempre lá qualquer coisa sobre a forma como as personagens reagem a uma situação limite, por exemplo, como no filme do [Abel] Ferrara [4:44 Último Dia na Terra]. Portanto, virei completamente a história para a parte científica, quando percebi que havia cientistas a trabalhar neste aspeto em particular. E eu própria quis trabalhar com eles. .A filigrana científica dos diálogos é impressionante. Como é que se deu essa colaboração com a comunidade aqui representada? Quando vi a notícia, havia uma série de nomes no artigo. Resolvi contactá-los individualmente, fazer entrevistas, e perguntei logo se estariam dispostos a ajudar-me na elaboração do guião, uma vez que se tratava de transpor o grupo de cientistas da vida real para a ficção. Eles mostraram-se muito interessados, colaboraram imenso, e houve depois um, o Luís Matias, do Instituto Dom Luiz (vocacionado para a Sismologia), com ligação à Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que acabou por ser o nosso consultor científico. Então, o que é que aconteceu? Durante a escrita dos diálogos – sobretudo naquela situação de emergência em que eles se reúnem no centro operacional – foi preciso apurar o jargão que tanto eu como o João [Cândido Zacharias], enquanto argumentistas, nunca conseguiríamos reproduzir. E na troca de e-mails com o Luís, as coisas que íamos corrigindo acabaram por mexer também um bocadinho com a dramaturgia. Ou seja, foi um trabalho de parceria entre a pura escrita do argumento e a supervisão científica, que se tornou fundamental – houve alturas em que o Luís me enviava notas extensas de 20 páginas! Estamos a falar de coisas que precisavam de estar mesmo por escrito, para se poder compreender e transferir para o guião... Foi uma colaboração muito profunda. E depois de o filme estar pronto, tendo sido mostrado aos cientistas ainda em fase de montagem, continuou a ser importante a validação deles ao nível do rigor. Aliás, os membros da comunidade que já o viram reveem-se ali e acreditam no projeto enquanto ferramenta científica. .Tudo o que acabou de descrever é um casamento feliz entre a ciência e o cinema, mas entre a ciência e a política parece haver ainda, na perceção do público, um certo divórcio ou desacordo... O que é que acha? Esse divórcio é mais ou menos claro nos tempos que correm. Viu-se as teorias negacionistas durante a pandemia e a dificuldade da abordagem política no mundo inteiro. Ainda no outro dia estava a falar com uma pessoa que advogava que isto tinha sido um exagero da parte da Europa... Ou seja, alimentam-se várias teses sobre a política na reação às questões científicas, e mesmo dentro da política temos negacionistas das alterações climáticas, como é o caso de Trump, que pode vir a ser reeleito presidente dos Estados Unidos! Por isso, ciência e política continuam a ser dois caminhos que por vezes se cruzam e outras vezes não se cruzam, e os pobres cidadãos estão um pouco à mercê das grandes decisões. Individualmente podemos fazer as nossas ações, consumir menos plástico, etc., mas o resto não controlamos. .A sua longa-metragem anterior [Linhas Tortas], à semelhança deste filme, é muito observadora das relações humanas moldadas pela tecnologia contemporânea. De alguma maneira, é este o objeto de estudo do seu cinema? Talvez não seja uma escolha consciente, mas sim, gosto de olhar para a contemporaneidade e para o modo como nos relacionamos hoje, quer uns com os outros quer com as tecnologias que temos. Para mim, até acaba por ser um pouco estranho perceber que o cinema atual, sobretudo o português, não reflete isso; está meio distanciado da vida tal como a vivemos agora... .Um lugar seguro, "para o caso de isto cair tudo amanhã"..E por falar em “vida como a vivemos agora”, há algo de conto de advertência neste O Melhor dos Mundos. Não se trata de um manual de instruções, mas há um olhar prático sobre a possibilidade de... Obviamente que não vale a pena pensarmos nisto todos os dias, mas há pequenas coisas que podemos fazer para minimizar os riscos – note-se que em caso de um grande terramoto, não vai haver comunicações no momento. Não estou a dizer que é preciso as pessoas fazerem um kit, aparafusarem as prateleiras e tudo isso. Mas combinar um ponto de encontro com quem se gosta ou com quem se vive é uma coisa simples de fazer, e é romântico, quase poético: “Olha, vamos combinar um ponto de encontro para o caso de isto cair tudo amanhã”.