Na companhia de Picasso e Renoir
A exposição dedicada a Jean-Luc Godard, na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, convida-nos a revisitar objectos, imagens e sons da sua filmografia, expondo laços com um universo imenso, pontuado por memórias e citações de muitas formas artísticas. Agora, através do respectivo catálogo e do retrato de um Godard desenhador e pintor, podemos também redescobrir os pintores que ele citou regularmente e, mais do que isso, obsessivamente.
Pedro, o Louco (1965) bastaria como eloquente exemplo da relação dinâmica de Godard com a pintura: reproduções de vários quadros de Pablo Picasso surgem nas paredes da casa que Jean-Paul Belmondo e Anna Karina habitam de modo efémero, sem esquecer, claro, que a personagem de Karina tem como apelido Renoir — o que nos pode levar a pensar na herança cinematográfica de Jean Renoir (1894-1979), mas que, de uma forma que o filme explicita, nos remete para os quadros do seu pai, Pierre-Auguste Renoir (1841-1919).
Aliás, Renoir surge desde logo na primeira longa-metragem de Godard, À Bout de Souffle/O Acossado (1960), na caracterização de Patricia Franchini, a personagem que Jean Seberg interpreta, contracenando com Belmondo. Em sentido literal e simbólico, o seu perfil está associado a Renoir, em particular ao retrato de Irène Cahen, pintado em 1880.
Por vezes, tal como acontece nas História(s) do Cinema (1988-1999), Godard mobiliza imagens de Goya, Delacroix ou El Greco em contraponto com fotogramas e cenas de filmes. Isso é particularmente sensível na evocação das vítimas das guerras do século XX, num ziguezague temporal e conceptual em que a pintura “antiga” nos ajuda a lidar com os fantasmas da nossa história de espectadores das imagens em movimento.
Outras vezes, as memórias da pintura imiscuem-se nas composições dos filmes. Referência muitas vezes citada é o azul da cara pintada de Belmondo nos minutos finais de Pedro, o Louco, “duplicando” a cor emblemática de diversas composições de Yves Klein (1928-1962) — aliás, coincidência nada banal, o “novo realismo” de que Klein foi um dos fundadores eclode em 1960, ano decisivo na afirmação da Nova Vaga de Godard, Truffaut, Rivette, etc. Enfim, não esqueçamos que o filme Paixão (1982) encena os trabalhos de uma equipa de filmagens que, em estúdio, com figurantes de carne e osso, procura “reproduzir” vários quadros célebres, incluindo A Ronda da Noite (1642), de Rembrandt.
Talvez se possa resumir tudo isto lembrando que a visão de Godard alimenta um fascínio muito especial pelo espaço clássico do museu, entendido como casa onde podemos renovar as energias da difícil arte de olhar o mundo à nossa volta, com gravidade e humor. Em Bando à Parte (1964), por exemplo, que fazem Anna Karina, Samy Frey e Claude Brasseur? Tentam bater o tempo recorde de uma corrida pelas alas do Museu do Louvre...