Jean-Luc Godard. A herança do cineasta que também foi escritor e pintor
Inaugurada em novembro do ano passado, a exposição dedicada à obra plástica de Jean-Luc Godard (1930-2022) continua patente na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, na Fundação de Serralves, no Porto, até 15 de junho. Agora, surge completada por um admirável catálogo/livro — Tendo em Linha de Conto os Tempos Atuais: Jean-Luc Godard - Obra Plástica — que, a par dos desafios da sua filmografia, não encaixa nos modelos tradicionais deste género de edições, antes prolonga a exposição através de um arranjo, ao mesmo tempo espectacular e didático, da herança visual do cineasta de O Acossado (1960), Pedro, o Louco (1965) e Eu Vo Saúdo, Maria (1985).
Importa lembrar que todo o cinema de Godard está povoado por referências a outras artes. Ele é mesmo um criador obcecado pelas citações, em particular de livros e pinturas, que surgem, não como cauções para o seu trabalho, mas sim companhias estéticas e éticas de quem sempre entendeu o cinema como um labor enredado com as histórias e as imagens que outros escreveram e produziram — vejam-se e revejam-se as suas monumentais História(s) do Cinema (1988-1999), um verdadeiro compêndio sobre o cinema como a “arte do século XX”, ou melhor, o século XX como o “século do cinema”.
Escrever e pintar
Se há dimensão fulcral na exposição e no livro, os seus termos envolvem, precisamente, a postura de um Godard que nunca se sentiu nem exprimiu como um “especialista” da arte cinematográfica — os seus textos críticos, em particular nos Cahiers du Cinéma das décadas de 1950/60, decorrem mesmo de um combate (atualíssimo!) contra as facilidades de qualquer “especialização” artística. A sua identidade criativa que, no limite, se confunde com os sobressaltos da sua biografia, define-se a partir de um gosto da criação de histórias e imagens que se manifesta muito cedo na sua existência — uma das revelações do livro é mesmo o primeiro guião que escreveu (c.1950), intitulado Aline e só recentemente descoberto.
Estamos, assim, perante a herança fascinante de um artista realmente plural que, num dos seus filmes (Duas ou Três Coisas sobre Ela, 1967), se apresentou como alguém que, diluindo as fronteiras entre política e poesia, trabalha como “escritor e pintor”. No prefácio, António Preto, diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, sublinha o facto de tal herança provir de “um período de mais de oito décadas, que remonta aos tempos da sua juventude e se estende às últimas obras em que trabalhou”, desse modo lançando “uma nova luz sobre a precocidade e a perenidade de temas, estratégias formais e métodos de trabalho, que não só reencontraremos em muitos dos seus filmes como viriam a tornar-se emblemáticos do seu universo autoral”.
A exposição de Serralves tem curadoria de Fabrice Aragno, Jean-Paul Battaggia, Nicole Brenez e Paul Grivas, os colaboradores mais próximos de Godard nos seus derradeiros anos de trabalho, sobretudo a partir de Filme Socialismo (2010). Reunidos no coletivo Ô Contraire!, assinam um texto de apresentação em que recordam a continuada atenção de Godard a essa “pequena parte da humanidade que é suposto comunicar fragmentos da realidade à comunidade”. A saber: jornalistas, espiões e detectives. Sem esquecer que o filme Scénario (que já não realizou, tendo restado apenas um conjunto de imagens de trabalho que existem em forma de trailer) deveria integrar um capítulo dedicado às “fake news”.
Uma casa do cinema
O livro está organizado em três partes. Um pouco como numa ficção “godardiana”, respondem-se e correspondem-se através de uma montagem que nos ajuda a compreender as aventuras de um criador que arrisca enfrentar a voragem do tempo histórico.
Na primeira dessas partes, deparamos com uma seleção de textos do próprio Godard em que, além do já citado Aline, surgem vários ensaios do começo da década de 1970 refletindo as convulsões políticas da sua “fase militante” (designação que arrasta sempre algo de equívoco), a par de um conjunto de “comentários sobre as artes” publicados em 1956 na revista Arts. Vale a pena citar algumas palavras desses comentários, na sequência de referências a autores como Nicholas Ray e Fritz Lang: “Por acreditarem no movimento, os cineastas, depois dos fotógrafos, descobriram por sua vez o instantâneo e, tal como a fala lhes tinha revelado o silêncio, o frenesim acabou por lhes dar o gosto pela imobilidade. (...) Paradoxalmente, é ao apropriar-se, no domínio dos fotógrafos, de algo do qual estes pretendiam distanciar-se, que os cineastas dos últimos anos se tornaram de novo pintores.”
A quase 70 anos de distância, tais palavras podem ser também uma porta de entrada nos materiais que ocupam a segunda parte do livro: uma imensa antologia de reproduções das “obras visuais” de Godard, incluindo “desenhos, pinturas, imagens digitais e fac-símiles de cadernos”. É mesmo necessário superar a noção automática, porventura sugestiva, mas imperfeita, de um Godard que assim prepara o “visual” dos seus filmes. Claro que essa preparação existe, mas não como esboço, antes como contraponto: pintar, desenhar ou criar colagens de desenhos e fotografias é já um exercício narrativo de enfrentamento do mundo e das suas formas instáveis — lembremos os exemplos modelares do caderno do filme A Mulher Casada (1964) ou da edição nº 300 dos Cahiers du Cinéma (maio 1979) em que Godard assumiu o papel de chefe de redação.
Completando as suas 450 páginas, o livro termina como uma secção intitulada “Ensaios e lembranças”, incluindo análises e entrevistas assinadas por autores como Paul Grivas, David Faroult e Dominique Païni. No final, é recordado um encontro lendário entre Manoel de Oliveira e Jean-Luc Godard, resultando numa longa conversa, aqui reeditada, tema de capa da edição de 4/5 de setembro de 1993 do jornal Libération. Revisitando os ecos dessa conversa, Alain Bergala (autor do álbum Godard au Travail, ed. Cahiers du Cinéma, 2006) analisa a “liberdade suprema” que, no plano artístico, ambos protagonizaram, começando o seu texto como uma pequena sugestão utópica que ecoa de forma subtil no espaço que acolhe a exposição que motiva este livro: “Na casa do cinema, com a qual Godard sonhava frequentemente, o realizador francês e Manoel de Oliveira habitariam, sem dúvida, o mesmo andar e o mesmo corredor.”