"Na Austrália temos um desrespeito saudável... por tudo"

Em Portugal para três espetáculos - em Lisboa, onde atuaram na terça-feira no teatro Tivoli BBVA, no Porto, no teatro Sá da Bandeira e em Faro, no teatro das Figuras - a dupla de humoristas australianos The Umbilical Brothers falou ao DN numa conversa que foi de Trump ser "o centro do mundo da comédia" ao sentido de humor dos chineses
Publicado a
Atualizado a

Sentados nas cadeiras do Tivoli, Shane Dundas e David Collins falaram das quase três décadas como dupla e até recriaram o pontapé que começou a sua relação de trabalho. Falaram do peculiar sentido de humor australiano, da reação dos diferentes públicos ao seu espetáculo e de como tiveram a ideia de juntar mímica aos sons feitos pelo Shane - "Um pouco como nos filmes de Hong Kong. Eles filmam tudo e só depois metem os efeitos sonoros por cima". Uma entrevista que não é para ser levada demasiado a sério.

Crocodile Dundee, Um Porquinho Chamado Babe. São vários os exemplos de comédias australianas com sucesso internacional. O que tem o humor australiano de tão peculiar?

Shane: Olá eu sou o Shane. Sou eu que vou responder. Sou o careca.

David: Eu também sou careca! Por baixo do cabelo! [risos]

Shane: Eu diria que o que tem de peculiar é uma certa falta de respeito pela tradição. É em parte isso. Podemos ser desrespeitosos de uma forma muito carinhosa. Essa é uma das chaves.

David: Temos um desrespeito saudável por...tudo! Pela tradição, pelas coisas novas... Uma das expressões que nos são mais queridas na Austrália é chamar a alguém "a dag" - ou seja, um "idiota simpático". É um termo afetuoso, mas estou na mesma a chamar idiota à pessoa.

E não há tabus, não há limites para esse humor australiano?

David: Não nos podemos levar demasiado a sério na Austrália. Se nos levarmos demasiado a sério, vamos ser apanhados pelo "efeito da papoila". Vamos ser cortados pela raiz. É o síndroma da papoila demasiado alta. Se fores uma papoila e cresceres demasiado, és cortada pela raiz. Não gostamos de ver alguém exibir a sua fama ou fortuna.

Shane: É uma faca de dois gumes. Todos querem ser bem-sucedidos, mas se te tornares demasiado bem-sucedido, as pessoas vão começar a chamar-te excêntrico. Não és australiano se tiveres amor-próprio.

Vale tudo então? Podemos rir-nos da religião, da política... da Rainha?

Shane: É interessante porque a Austrália é um país relativamente jovem. A parte ocidental, pelo menos. A parte indígena da Austrália, por outro lado, tem dezenas de milhares de anos. Mas a parte inglesa é jovem. Ainda estamos a crescer. Podemos seguir caminhos divergentes. Podemos tornar-nos conservadores ou ir na outra direção. O nosso país é como um adolescente.

David: Sim, até aos anos 80 éramos muito ingleses, a televisão, todas as nossas influências eram muito inglesas. E depois tornaram-se americanas inf.... Ia dizer infelizmente. A América tem-nos dado a mão, temos caminhado na sua direção. Já há muitos anos. E hoje isso tornou-se perigoso. E tonto. Atuámos há pouco em Nova Iorque. Mas era Nova Iorque, não era bem...

Não é bem a América?

David: Sim, Não costumamos ser muito políticos em palco, mas ali tínhamos de fazer uma referência. Porque [Donald] Trump hoje é o centro do mundo da comédia. É perfeito. É a tempestade perfeita para a comédia. Por isso tínhamos de lhe fazer uma referência.

Shane: Sim, Trump é o Mestre de Cerimónias da festa de fim de noite da América.

David: Adeus América, olá China, queres vir ocupar o lugar?

Shane: Não sei se é assim... ele é o palhaço que chega atrasado à festa mas quer atuar na mesma. Dizem-lhe, "não, não queremos que atues", mas ele insiste. "Não tens de pôr a peruca!", "não é uma peruca!". Sentimos que tem de ser uma brincadeira. É como se houvesse uma equipa de filmagens escondida atrás da América que de repente vai saltar de trás dos arbustos e dizer ao resto do mundo que era só uma piada. Que isto não aconteceu!

David: A melhor coisa em relação a Trump é que ele só pode ser uma espécie de fisga. É como se puxassem um elástico para um lado e ele voltasse com toda a força para o outro. Esperamos que o país não vá só vzzzzzzz, mas vá vzzzuuuuumm.

Shane: É como um pêndulo que volta para trás. Na Austrália temos um governo muito conservador. E está a ir nessa direção em tantos aspetos...

Vocês mudam de governo tantas vezes na Austrália...

David: Ainda tenta acompanhar? Nem nós conseguimos...

Shane: Sim, eles mudam dentro do partido e acabamos com alguém como primeiro-ministro em quem nem votámos... e eu de certeza que não votei no atual... e isto faz parte do facto de ainda estarmos a crescer e a tentar perceber quem somos. Culturalmente, como disse o David, nós crescemos com essa influência inglesa. Hoje somos um país multicultural. Mas quando estávamos a crescer, o nosso humor vinha de Inglaterra, depois tivemos uma grande injeção de cultura americana. Nos nossos espetáculos há muitas referências à cultura pop norte-americana

David: E também fomos influenciados pelos Monty Python. Vão poder ver essa tontice no espetáculo.

Shane: O que fazemos reflete a nossa nação. É muito infantil. Mas a estrutura é secretamente não infantil. E a construção do humor não é infantil. Mas a forma como atuamos é infantil.

Funciona em vários níveis, certo? É um humor muito físico, mas com profundidade?

Shane: Sim. Temos seis espetáculos diferentes. E num deles levamos, literalmente, a audiência num elevador para diferentes níveis. Mas o problema é que é muito difícil explicar o que fazemos. As pessoas têm tentado fazê-lo nos últimos 20 anos, mas é difícil...

Não basta dizer, vão e vejam?

Shane: Isso basta se for um amigo a dizer. Se for um jornalista...não funciona. No Youtube pode-se ficar com uma ideia. Pode dizer às pessoas para irem ver ao Youtube. Mas não demasiado. Só um bocadinho.

David: Eu diria que é uma espécie de slapstick [como o Bucha e o Estica] com alguma stand up comedy pelo meio.

Em Portugal, quando contamos uma anedota é uma anedota de alentejanos. Eu própria sou alentejana! Há algo semelhante na Austrália? Em França contam piadas sobre os belgas?

Davis: Raios partam os belgas! Jesus.

Então?

Shane [interrompe]: Há sempre uma rivalidade entre Sydney e Melbourne. Mas nós não a sentimos verdadeiramente. Também há uma tensão entre Austrália e Nova Zelândia. Os australianos fazem piadas sobre os neozelandeses, os neozelandeses fazem piadas sobre os australianos. É como se a Austrália fosse os EUA e a Nova Zelândia fosse o Canadá. É muito semelhante.

David: Mas o raio dos belgas! Não estou a brincar com o raio dos belgas.

Shane: Os belgas são pessoas muito reservadas em termos de personalidade. E isso reflete-se como audiência.

David: Ou não se reflete, queres tu dizer!

Shane: Ou isso. Já disse ao nosso manager que não quero voltar a atuar na Bélgica. Já trabalhámos em 40 países. Todos os públicos reagem e riem-se. Os belgas são reservados.

David: Ainda bem que se riem por dentro mas por fora... nada. Só no final é que aplaudem. Mas já é tarde! É tarde demais, belgas!

Shane: Acho que eles tentam não interromper o espetáculo com os seus risos.

David: Gosto de belgas, mas não do público belga. Não se podem juntar demasiados.

Vocês conheceram-se em 1988...

Shane: Sim, em 1988, na escola de representação.

E tudo começou com um nariz partido...

Shane: Foi o meu nariz. [David simula um pontapé na cara de Shane]. Fazemos um pouco de tudo na escola de teatro. Aprendemos de tudo. E tivemos aulas de dança jazz. A professora fez a coreografia de Baby You Can Drive My Car, e disse para nós encontrarmos um par e colocarmos a nossa própria coreografia no meio da canção. Por isso metemos alguns movimentos do Jackie Chan. Ela não especificou que tipo de coreografia. por isso metemos uma pequena cena de luta, porque éramos grandes fãs de Jackie Chan.

David: Mais tarde conhecemo-lo. É um homem muito simpático.

Shane: O resultado foi um espantoso pontapé no ar que não era suposto acabar no meu nariz. E basicamente fiquei a cheirar só para a direita [ri].

David: Mas conseguimos uma boa nota.

Como decidiram trabalhar juntos?

Shane: Numa tradição australiana de nos rirmos das tradições, tivemos de fazer uma prova de mimo. Cinco minutos de mímica.

David: E pensámos, que seca! É tão lento!

Shane: Sabe qual o maior problema com os mimos? São demasiado calados.

David: Sim, tinham de ser mais barulhentos. Por isso eu comecei a fazer de mimo e o Shane fazia barulhos. Um pouco como nos filmes de Hong Kong. Eles filmam tudo e só depois metem os efeitos sonoros por cima. O Shane começou a fazer isso. E foi muito divertido. No final do dias seguinte, depois do exame, perguntámos se podíamos mostrar o resultado à turma. E todos se riram. Pensámos: que interessante.

Shane: Tudo começou como uma piada, nas aulas de teatro. 27 anos de trabalho profissional juntos e não passa de uma piada.

David: Estivemos num festival de palhaços em Tenerife e todos perguntavam em que escola de palhaços andámos.

Shane: E nós tivemos duas semanas de aulas de mimo! Somos apenas atores.

David: Só tentamos fazer as pessoas rir.

Shane: Somos atores a ser crianças...

David: Atores a tentar tirar a criança de dentro do público.

Shane: Tentamos ligar-nos ao público, à sua criança interior. Este show em particular é uma seleção de cenas de outros espetáculos. Por isso deve ser mais dinâmico e virado para a ação do que os outros.

É um tipo de humor que funciona em todo o lado?

David: Sim, é universal.

Shane: Na Bélgica não. Na China foi estranho. Ainda estamos a tentar perceber. Sempre que lá fomos atuámos para um público convidado. Ou era um programa de TV ou na expo. Acho que não atuámos para as pessoas comuns.

David: Na China fizemos um especial na TV. Fizemos duas cenas. Na primeira ficaram silenciosos, Na segunda riram-se. Não percebi porquê. Ainda estamos a tentar perceber.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt