Músicos unem-se para acordar consciências
Disseram que encontraríamos ogres e lobos maus nos bosques. Não é verdade (...).Os solitários e os enfermos vêm ver-nos, e as velhas acendem tochas para nós nas cabanas. Também para nós badalam os sinos das Igrejas", escreveu Marcel Schwob no pequeno livro A Cruzada das Crianças. Publicado no princípio do século XX sobre um acontecimento passado na Idade Média, o texto do autor francês poderia aplicar-se com justeza ainda a estes nossos tempos, em que milhões de crianças, acompanhadas ou não pelas famílias, são obrigadas a deixar os países de origem e a enfrentar o desconhecido, com o ingrato estatuto de refugiado político ou económico. Esbarram vezes demais na indiferença geral, mas há também quem, como no livro de Schwob, acenda as tais tochas nas "cabanas" para os alumiar. Ou faça tocar a música como outrora repicavam os sinos.
É o caso de Davide Zaccaria, músico italiano a viver em Portugal há mais de 20 anos, diplomado em Violoncelo e Guitarra pelo Conservatório Giuseppe Verdi de MIlão (cidade onde nasceu), produtor, compositor e professor, e de sua mulher, a cantora portuguesa Maria Anadon. Em julho de 2020, a braços com as dificuldades que a pandemia colocou aos trabalhadores das artes e da cultura, anunciaram, em entrevista ao DN, a intenção de lançar um grande projeto humanitário, capaz de con- gregar os esforços de alguns dos maiores nomes da música do nosso país. E foram à procura do modus faciendi... e de quem se lhes quisesse juntar. Que, como veremos, foram muitos.
Fosse esta reportagem o guião dum filme e agora leríamos a indicação "ano e meio depois". Nos Estúdios Namouche, em Lisboa, aos 17 de fevereiro de 2022, um elenco composto por Paulo de Carvalho, Dulce Pontes, Tatanka, Salvador Sobral, João Afonso, Jorge Fernando, FF, Maria João, Selma Uamusse , Maria Anadon , Fábia Rebordão, Luanda Cozetti , Ana Lains, Soraya Ravenle , Os Anjos , Carlos Alberto Moniz, Vítor Paulo, Firmino Pascoal, Pedro Branco , Ritta Tristany, Telmo Pires, Filipa Tavares e ainda os atores Eurico Lopes, Luísa Ortigoso e Beto Coville gravam o tema, com letra de Tiago Torres da Silva e música do próprio David Zaccaria. Acompanham-os ainda um coro feito de alunos da Escola de Jazz do Barreiro, onde Davide e Maria são professores, e crianças do Centro Português de Recolhimento de Refugiados, num leque etário que vai dos 5 aos 15 anos. No dia seguinte, seria a vez duma pequena orquestra entrar em estúdio para gravar a parte instrumental do trabalho.
"Este é um projeto humanitário, cuja receita reverterá para crianças refugiadas de países como a Síria, Afeganistão, Congo ou Irão, mas também para crianças portuguesas carenciadas", explica ao DN, Davide Zaccaria. "Neste momento, estamos a gravar em conjunto o primeiro tema, que vai, por assim, dizer empurrar o disco. Depois, ao longo de dois meses de estúdio, seguir-se-á um conjunto de duetos de cada cantor com as crianças. O Paulo de Carvalho, por exemplo, vai cantar Mãe Negra com uma criança que a cantará na sua própria língua."
A motivação do grupo é uma evidência para quem assiste. Maria Anadon confirma-o: "Estamos a trabalhar com muita alegria e temos como principal objetivo alertar a opinião pública para o facto de nós, em Portugal, neste momento, nem sequer conseguirmos imaginar o que tem sido a vida destas pessoas. No centro de refugiados há um jovem músico afegão, Jamal Hashemi, que não tocava piano há um ano e nós conseguimos providenciar-lhe um. Foi uma grande alegria." Mas as preocupações de Maria com quem vem de fora não a impedem de ver o que se passa cá dentro: "Também envolvemos neste trabalho algumas das minhas alunas bolseiras na Escola de Jazz do Barreiro. Em Portugal, também temos guerras, porventura mais silenciosas e invisíveis, mas que precisam de ser resolvidas."
Jamal Hashemi, 30 anos, é o músico afegão de que Maria fala. Prepara-se para tocar com Ustad Fazel Sapand, Rahman, Armindo Neves, Luís Pinto, Ivo Martins, Paolo Massamatici e Davide Zaccaria. Chegou a Portugal em dezembro e conta a alegria que foi desembarcar "num país agradável, com um Inverno muito suave, onde rapidamente foi possível voltar a trabalhar em música e a tocar um piano. O que se está aqui a passar é maravilhoso porque nós não falamos as mesmas línguas mas a música consegue ser, de facto, uma linguagem universal e estabelecer pontes." De sorriso fácil, Hashemi não esconde, no entanto, o que lhe pesa no coração: "Ainda tenho a família no Afeganistão, falo com eles todos os dias via WhatsApp, tento mostrar-me otimista para não os perturbar. Creio que eles fazem o mesmo, mas não é fácil." Jamal é um dos 273 artistas afegãos que Portugal recebeu em dezembro, numa iniciativa diplomática que contou com a colaboração do Instituto Nacional de Música do Afeganistão, onde muitos deles são alunos ou professores.
Também na organização deste projeto, a cantora Ana Laíns insiste na necessidade de gerar empatia, através da música: "É o que temos para dar a estas pessoas, que precisam de tanto, e o principal objetivo é sobretudo consciencializar a sociedade para as necessidades destes seres humanos que apenas querem reconstruir as vidas e voltar aos seus países tão depressa quanto possível. Não estão aqui para nos fazer mal ou sequer para nos tirar o que quer que seja." Um propósito que é comum a Paulo de Carvalho: "Um projeto como este significa que aquilo que tenho feito, ao longo de 60 anos de música, faz sentido. A solidariedade é um valor maior e, em termos musicais, tem a capacidade de fazer aquilo que raramente se consegue, que é juntar um grupo de malta deste meio, de várias gerações, e pô-lo a trabalhar em conjunto." Paulo espera que disco e videoclip sirvam para recolher os fundos tão necessários, mas sobretudo gostaria que "a mensagem passasse para a sociedade. Os portugueses andam muito adormecidos, e cada vez mais, por um lado porque são levados a isso e, por outro, porque se esforçam pouco. Ora, eu não me conformo com esse estado de coisas."
Ao lado destes pesos pesados da música nacional, estão as alunas da Escola de Jazz do Barreiro: são quatro, mas Mariana e Letícia, ambas de 15 anos e mais faladoras (e empolgadas com esta primeira vez em que falam à imprensa), realçam a "oportunidade e experiência que é trabalhar num projeto grande, ao lado de grandes músicos e cantores." Mas, como sublinha Letícia, também lhes importa "que este seja um trabalho capaz de mostrar aos portugueses a importância de saber receber os refugiados e de dar valor ao que tantas vezes se dá por adquirido." Envolvida neste projeto desde a primeira hora, a Escola de Jazz do Barreiro, segundo o seu diretor, Paulo Parra, marca "assim uma posição de preocupação social, quer dos seus alunos, corpo docente, quer do organismo que gere a Escola, a Cooperativa de Solidariedade Social e Cultural Operária Barreirense, uma antiga cooperativa de operários corticeiros." Hoje com 88 alunos, entre os 6 e os 80 anos, ensina jazz (tem até uma big band, cuja atividade teve de ser suspensa por causa da pandemia), mas não só. Nos próximos dois meses, no Estúdio Namouche, a música não vai parar até que este Crianças pela Paz se transforme em disco. E numa mensagem capaz de interpelar os portugueses.
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