Foi a morte de David Lynch, o cineasta que também pintava e fazia música, que levou à criação do concerto-performance The Spirit Lamp. Chrystabell, nome artístico de Chrysta Bell Zucht, muitas vezes apelidada de ‘musa’ de Lynch, fez com ele três discos, o último dos quais lançado em agosto do ano passado (Cellophane Memories) e foi escolhida pelo realizador para integrar o elenco da série Twin Peaks: The Return, em 2017, onde interpretou a agente do FBI Tammy Preston. A artista anda em digressão pela Europa com este espetáculo que descreve, em entrevista ao DN, como “uma vela que estou a acender para o David”, e que esta noite será apresentado em Lisboa, na Voz do Operário, no âmbito da BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas. The Spirit Lamp tem música de David Lynch e Chrystabell, que interpreta as canções, e é uma colaboração com o cineasta experimental David Gatten. A artista explica que esta parceria aconteceu quando Gatten lhe deixou um comentário, em fevereiro, num post do seu blog intitulado A Significância da Rosa Azul, onde ela fala sobre “as sincronicidades em torno de Twin Peaks e de todas as minhas experiências”. . “Uma das coisas que aprendi com o David é seguir a minha intuição, mesmo quando parece mal pensado. Foi o caso com David Gatten”, sublinha. “Havia esta mensagem, quando eu acordei no dia de São Valentim deste ano, de um homem maravilhoso que eu não conhecia, mas a mensagem era tão poética, tão pura, com condolências para o falecimento de David, e a partilhar comigo que a música que David e eu fizemos juntos era muito importante para ele. E ele também mencionou que era um cineasta experimental, mas realmente não disse muito mais do que isso”. Quando percebeu que Gatten era cineasta, propôs-lhe fazerem juntos um espetáculo para “celebrar o David”. “De alguma forma, eu senti que ele era a pessoa perfeita para fazer isto. Segui a minha intuição, segui o meu coração e perguntei a esta pessoa, que eu não conhecia de lado nenhum e sobre o qual eu não sabia nada, e ele respondeu que sim, que adoraria fazer isso”. Acontece que David Gatten revelou ser, como destaca Chrystabell, “não apenas um cineasta experimental, mas um dos cineastas experimentais mais celebrados e reconhecidos do nosso tempo”. Para a artista, fazer este “luto” com David Gatten é um “presente, porque eu estava a passar pelo processo sozinha.” . Quando Lynch a incluiu na série que foi um verdadeiro fenómeno televisivo, já Chrystabell colaborava com o cineasta desde 1999. Nesse texto do seu blog, ela revela que nunca lhe passou pela cabeça que ele a convidasse fazer parte de Twin Peaks mas, olhando para trás, percebeu que “tinha estado 15 anos em audição para um papel na série”, em que contracena com o próprio David Lynch que interpreta a figura de Gordon. “O David e eu, tal como Gordon e Tammy, têm repartee fácil e um forte respeito mútuo”. Chrystabell escreveu com Lynch a música Polish Poem que seria incluída no filme Inland Empire (2006) e os dois lançaram três projetos discográficos: This Train (2011), o EP Somewhere in the Nowhere ( 2016) e o álbum Cellophane Memories ( 2024). A artista emociona-se quando fala do impacto que David Lynch teve na sua vida e no seu trabalho artístico. “Está no meu ADN criativo. Foram 25 anos de estar próxima dele, de ser criativa com ele, e de ser influenciada das formas mais bonitas e profundas, e influenciando-o também”. Descreve-o como uma “antena que está a receber transmissões o tempo todo, do desconhecido, do éter, das pessoas ao redor dele, da arquitetura. Ele está sempre a trazer tudo para si. Mas também a dar muito. E eu recebo muito dele. É como se ele estivesse em todo o lado, ele não se foi embora. Mas a mudança da sua presença na realidade dimensional é profundamente sentida”. . A colaboração entre os dois não terminou após o lançamento do novo disco em agosto do ano passado. “Estávamos a planear fazer um álbum pop. Ele disse, ‘Chrystabell, porque é que não escrevemos umas canções que as pessoas passarão na rádio?’ Era a próxima aventura. E tínhamos escrito muitas mais canções. O David sempre criou, mesmo até ao fim. Era sempre território fértil, qualquer coisa podia acontecer, tudo era possível. Ainda éramos muito criativos juntos, eu estava a viver em Los Angeles para estar perto dele. Compartilhei momentos lindos até ao fim”. David Lynch morreu aos 78 anos (no dia 16 de janeiro de 2025) e, atesta Chrystabell, manteve-se um experimentalista até aos seus últimos dias. “Em todos os aspetos da vida. Sempre intrigado e entretido, havia este chapéu da experimentação, nada pode correr mal, porque uma experiência não pode correr mal. É tudo uma interpretação. Outra pessoa pode achar que correu mal, mas tu pensas que é a perfeição. Tive muitos desses momentos com o David, em que estávamos a ouvir alguma coisa juntos, e eu estou perplexa e ele está positivo -‘é a coisa mais deslumbrante que já ouvimos’ -, e então uma pessoa abre-se e permite que esta outra perspetiva se desenvolva. Porque há muita rigidez, estamos condicionados, e o David era muito bom a suavizar essas arestas e a permitir outras ideias num fluxo criativo”.Para Chrystabell, “ o cineasta “tinha uma chave que poderia destrancar esse outro lugar, onde agora a sua perspetiva mudou, está a pensar de uma forma diferente, a ver coisas de um ângulo diferente, cores novas, essa foi a dádiva que o David deixou”.Chrystabell partilhava com o cineasta uma faceta espiritual. Ela, tal como Lynch, faz meditação transcendental (TM), e considera que esta prática terá tido o seu peso no espírito criativo de Lynch. “Quarenta minutos, vinte minutos de manhã e 20 minutos à tarde de meditação durante cinquenta anos. Quem poderá dizer quem ele teria sido sem isso? É claro que ele era uma pessoa extraordinária, mas o próprio David mostrou muita apreciação e gratidão pela TM na sua vida, na sua realidade espiritual. Eu não o conheci antes da meditação, assumo que seria altamente místico e equilibrado, mas ele dá crédito à meditação, então vou honrar isso . ”“Piscar o olho ao absurdo”No espetáculo The Spirit Lamp que anda em digressão por várias cidades europeias, Chrystabell diz que está “a evocar, a convidar, a sua essência, a sua presença, para encher o espaço. Reverência, mas reverência de um modo leve. Uma reverência tão profunda que ela não pode ser expressada sem ser através de deslumbramento infantil”. Porque, acrescenta a artista, “para mim, é isso que ele inspira. Mesmo nas profundezas da intensidade, há sempre um piscar de olho ao absurdo. Nunca estamos muito longe de nos rirmos de nós próprios. Tento não me levar muito a sério, e o David também me ensinou isso”.O The Spirit Lamp é, para Chrystabell, quase um experiência religiosa. “Há essa vela que eu vejo na minha mente, esse lindo ritual de acender uma vela para os nossos ente queridos que faleceram. E esta é a vela que estou acender para o David.”Sobre a escolha das músicas que ela interpreta no concerto-performance, Chrystabell diz que são as canções “que agarram o momento presente e trazem-no para a realidade. São contemplativas, são músicas que o David e eu escrevemos durante anos e que pareciam definir este momento perfeitamente. Profundas e melancólicas, mas também com este lado de que precisamos, de possibilidade. É muito emocional”. A artista gostaria que o espetáculo se tornasse um espaço onde as pessoas podem expressar as emoções. “Não há pressão, mas pode ser catártico estarmos juntos e partilharmos este momento. É esse o convite, não há expectativa, mas chegamos aqui para um lamento, e essa palavra não tem que ser muito pesada, pode ser apenas o que for que está sentir agora mesmo, que pode ser expressado, e eu estarei lá ”.Como numa igreja É um espetáculo para quem admira David Lynch, mas também, diz Chrystabell, para quem queira um “espaço comunal, como uma igreja, e talvez essa seja uma palavra com peso, mas é a essência do que espero conjurar, uma sensação de reverência e de um lugar seguro para experimentar emoções, porque às vezes, como no cinema de David, é como se isso permitisse um portal para algo mais profundo. Não estamos sempre a permitir-nos sentir, e eu espero que talvez esta música e este espetáculo possam fazer isso mesmo”.A artista avisa que esta performance talvez não seja para todos. “Se você está à procura de algo animado, divertido para as crianças, não sei se este será o espetáculo adequado. Se está à procura de algo profundo e reverente, trazendo David Lynch ao coração e ouvindo música, canções que vêm da alma, então este pode ser o espetáculo para si”. A cantora já esteve várias vezes em Portugal, a última das quais no LEFFEST - Lisbon & Sintra Film Festival, em 2018, precisamente para falar da sua colaboração com David Lynch. “Mas Lisboa permaneceu um dos meus lugares favoritos na Europa, um dos meus lugares favoritos, ponto. Tenho a certeza que ouve isso muito, mas a cidade tem uma qualidade que é super sonhadora”Chrystabell diz-se “muito feliz por voltar e estou animada por participar na Boca, sinto que as mãos de David estão celestialmente em tudo isso, guiando, e sinto isso pelo meu conforto, pela minha sanidade, porque é a transição, e sinto-me muito agradecida por partilhar isto. Porque, honestamente, tem sido muito curativo. O The Spirit Lamp ajudou-me realmente a voltar à vida. Depois de o David morrer eu estava muito perdida, durante muitos meses, e o The Spirit Lamp é a vela também para me trazer de volta à vida.” .BoCA Bienal 2025 reforça relações culturais entre Portugal e Espanha .Pedro Abrunhosa: “O novo disco é mais para a dor do que para a celebração”