São muitas as queixas de que a Disney, com a sua agenda de versões live-action, continua a estragar a infância de quem cresceu com os grandes clássicos da animação. Exageros à parte, se isso pode ser (e é) verdade para alguns casos, mediante o grau de memória afetiva de cada espectador, uma coisa é certa em relação ao novo Mulan: aqui, o ato de "refazer" conseguiu livrar-se do fardo da colagem, contrariar o método da imitação cena a cena, para dar origem a um outro filme, este, a piscar o olho à tradição do wuxia (género importado de Hong Kong que combina fantasia e artes marciais). Ou, pelo menos, tentou-o respeitosamente, dentro do que é o modelo do filme de família segundo os estúdios do Rato Mickey. Nada se perde, tudo se transforma; e ainda assim não se estava à espera do modesto atrevimento..Assinado pela realizadora Niki Caro, Mulan segue, em termos narrativos, a mesma jornada que conhecemos da animação de 1998. É a história da jovem que se faz passar por homem para se juntar ao exército chinês no lugar do pai, um guerreiro honrado que estava pronto a servir o imperador, apesar da idade e das marcas físicas da guerra. Mas se nesse primeiro filme a sua atitude se justificava somente por um impulso de coragem, há na nova Mulan (Yifei Liu) uma inclinação natural para a decisão de fugir a cavalo a meio da noite com a armadura e a espada do pai. A saber, ela tem um talento superior nas artes marciais e, claro, não encaixa de todo nas expectativas que a China Imperial reserva às mulheres, entre o casamento e rituais de chá. .YouTubeyoutubeKK8FHdFluOQ.Sem surpresas, a neozelandesa atrás da câmara puxa o lustro ao fator feminista da ancestral lenda chinesa, encontrando elementos certos para tocar nos temas modernos sem cair na vã pregação. Desde logo porque se acrescenta uma personagem ao esquema: interpretada por Gong Li, a musa dos filmes de Zhang Yimou, Xianniang é uma feiticeira que estabelece com Mulan um diálogo de mulher para mulher num contexto de domínio masculino. .Lembram-se do falcão que acompanhava o vilão do desenho animado? É essa ave que no filme de Niki Caro se chama Xianniang e se apresenta em constante metamorfose, num jogo de forças e amor-ódio com Mulan (estilo Darth Vader/Luke Skywalker), acabando por servir de voz que alimenta a afirmação da heroína guerreira. No final, a segurança do imperador continua a estar em boas mãos....Porque é que, apesar de não ter as emoções do original, o remake de Mulan merece o nosso apreço? Por um lado, porque deixa à animação o que é da animação e, por outro, ensaia um tipo de cinema de ação que refresca o catálogo da Disney, ao mesmo tempo garantindo o selo family-friendly. Sim, sente-se a falta do humor enérgico do dragão falante (aqui trocado por uma fénix que sobrevoa algumas cenas) e faltam as canções; mas, lá está, ambos os registos pertencem ao reino da animação..Niki Caro foi capaz de converter minimamente essas ausências em oxigénio para experimentar um traço moderado dos filmes wuxia. Veja-se a coreografia de Mulan a saltar telhados, em dois momentos ou o brilharete em frente aos seus irmãos de armas no campo de treinos, antes da batalha com os invasores do norte. São, de resto, sequências "embelezadas" pelos efeitos especiais que procuram responder à escala do grande ecrã a que estavam à partida destinadas, não fosse o revés da pandemia. .Evidentemente, a estreia em streaming (Disney+) não beneficia Mulan, uma produção que apostou na carga épica das paisagens, assim como no detalhe cultural. E também é verdade que estamos longe da arte, por exemplo, de O Tigre e o Dragão, de Ang Lee. Mas há uma habilidade simples que segura o empreendimento e que, de raiz, o livrou da tentação de uma cópia de má qualidade. Congratule-se o gesto, a que não será porventura alheia uma sensibilidade feminina..Bom ***