"Morte no Nilo". Quando não se pode dizer viva o luxo...
Um dos filmes de grande orçamento mil vezes adiado por força da pandemia chega esta semana com algum aparato promocional. Morte no Nilo volta a ter Kenneth Branagh como Poirot. E talvez seja a última vez que veremos Armie Hammer num filme de estúdio, ele que agora está "cancelado".
É espantosa a forma como se pode desperdiçar o material de Agatha Christie desta maneira. Em 2017 o resultado da adaptação de Um Crime no Expresso do Oriente por parte de Sir Kenneth Branagh não entusiasmava, mas evitava o embaraço. Ora, embaraçoso é tudo o que agora temos diante dos olhos. Desta vez, a irrisão e a falta de respeito de Branagh é de uma arrogância sem bom senso. Torna as personagens tontas e caricaturais, a trama barata e baralhada e o ambiente ridículo e tragicamente "leve". Se da primeira vez já se torcia o nariz à matriz de grandiosidade e de excesso de efeitos visuais, agora o cruzeiro no Nilo é uma overdose digital que nem com mil comprimidos enjomin salva o espetador do enjoo.
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Tal como ficou sugerido no filme anterior, onde todos eram os culpados, a nova aventura do mais famoso detetive do mundo, o belga Hercule Poirot passa-se no Nilo, local escolhido para as suas férias. Pois, o problema é que uma mente como a de Poirot nunca pára e onde ele está pode sempre acontecer um caso. Seja como for, antes do calor do Egito há ainda uma espécie de preâmbulo na Primeira Guerra Mundial onde vemos um Poirot jovem (legenda para make-up digital para o rosto de Kenneth Branagh) num feito heroico nas trincheiras. Serve este momento a preto & branco para quê? Talvez no papel fosse mostrar algo mais do passado do enigma Poirot, na prática não serve para nada, mesmo quando se revela a origem do tenebroso bigodão do senhor.
Também antes da aventura no rio Nilo, vemos ainda Poirot na noite de Londres a curtir a música negra americana de uma cantora de jazz chamada Simone (Sophie Okonedo) e a espreitar um triângulo amoroso entre uma herdeira (Gal Gadot), a sua amiga Jacqueline de Bellefort (Emma McKey) e o seu noivo, o fura-vidas Simon (interpretado com prontidão por Armie Hammer, o tal ator caído em desgraça em Hollywood pela sua conduta sexual), algo que lhe vai ser útil mais à frente. E esse mais à frente dá-se em plenas pirâmides da Necrópole de Gisé (obviamente as pirâmides são um efeito visual, sem textura, apenas brilho...) onde Poirot dá de caras com o amigo Bouc, companheiro de aventura da anterior investigação. O extravagante inglês está a passar umas férias com a sua mãe e convida o detetive para uma festa de noivado de Linnet Ridegway, a herdeira que conhecera no clube de jazz. E qual não é o espanto de Poirot que Linnet acabou por ficar com o noivo da amiga Jacqueline. Subitamente, vê-se convidado de um cruzeiro onde se festeja esse casamento. Incrível e ainda mais surpreendentemente, Jacqueline consegue entrar nesse cruzeiro e as suas intenções não são propriamente festivas. Depois de uma noite com alguns equívocos, na manhã seguinte a herdeira aparece morta com um tiro na cabeça. Poirot tem de interromper as férias e tentar evitar que o assassino volte a atacar de novo. Sem surpresas, todos são suspeitos, mesmo apesar de alibis...
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Desmesuradamente estilizado e com ares de novo riquismo, este novo Death on the Nile nada tem a ver com o anterior de John Guillermin, de 1978, "whodunit" bem mais honesto e eficiente. Quer ter um lustro que nunca o justifica e embelezamento de direção de arte e guarda-roupa que é só vistoso e nada mais. Branagh abana, levanta e circula a câmara pelos cenários de CGI mas parece sempre perdido na atmosfera. O realizador e protagonista torna implausível a própria ideia de mistério do texto de Agatha Christie e torna-se difícil acreditar naqueles suspeitos - seja na sua culpa ou inocência. Depois, há também a crença que o desfile de estrelas é uma prova do charme deste tipo de filmes de ensemble. Nada disso acontece neste caso, onde os atores estão a representar em tons diferentes. Temos por exemplo uma Dawn French a querer ser alívio humorístico e a não ter piada nenhuma e uma Annette Bening perdida em tudo aquilo. Mais grave é a insipidez de Gal Gadot, atriz sem unhas para um papel que pedia uma atriz que jogasse com a ambiguidade, ou a inoperância demasiado histriónica de Tom Holland. No meio do naufrágio, é com espanto que se salvam Russel Brand, mais sóbrio do que todo o elenco junto, e Emma Mackey que consegue ser excessiva sem ser ridícula.
O filme literalmente apenas não se afunda porque no meio de tudo a personagem de Poirot nunca deixa de fascinar, mesmo com camadas de vaidade do trabalho de ator de Branagh. Não deixa de ser simpático perceber que através da observação de Poirot somos nós, os espetadores, quem acabamos por estar a observar o comportamento humano, muitas vezes a miséria humana. E se é verdade que a inclinação da autoparodia do género do filme policial "antiquado" é inapropriada, bem como toda o seu gigante número de artificialismo de luxo de pechisbeque, também não custa admitir que há uma tentativa de perseguir uma excentricidade que a espaços é bem esgalhada. O certo - e o mais grave - é que a dada altura já ninguém quer saber quem é o criminoso.
Em consequência, Branagh não se pode espantar quando serve de rábula extremista num dos mais hilariantes episódios da série de Ricky Gervais, After Life.

dnot@dn.pt
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