Meryl Streep em dose dupla na HBO e Netflix
Por Inês N. Lourenço
Antes da grande dama Meryl Streep, há um nome a reter nos créditos do novo filme de Steven Soderbergh: Deborah Eisenberg (n. 1945), a escritora que assina aqui o argumento e na qual, sem sombra de dúvida, se inspira a própria personagem de Streep. Let Them All Talk centra-se em Alice Hughes, uma autora americana, já com um Pulitzer no bolso, que deve dirigir-se a Inglaterra para receber um outro prémio. Ela recusa-se a andar de avião e a sua agente literária resolve o problema propondo a travessia por mar a bordo do navio de luxo Queen Mary 2. Alice aceita, apenas na condição de poder levar como convidados um jovem sobrinho querido e duas amigas do tempo da faculdade. Apetece dizer: está formado um peculiar "Ocean"s Four" pelo realizador de Ocean"s Eleven.
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De resto, as quatro personagens convergem para o barco, sob o chamamento invulgar da autora, com a mesma disposição airosa com que Soderbergh alinhava no outro filme os assaltantes sob a égide de George Clooney. O sobrinho de Alice, Tyler (Lucas Hedges), segue com agrado para esse cruzeiro na companhia de septuagenárias, enquanto as duas amigas da tia, Susan (Dianne Wiest) e Roberta (Candice Bergen), não parecem muito esclarecidas sobre a razão do convite. Desde logo porque, assim que se reúnem a bordo, Alice deixa claro aos convivas que está ali para trabalhar no seu novo manuscrito, entre pausas para exercício físico, e por isso só terão encontro marcado às refeições. Uma atitude, no mínimo, bizarra.
E é nas águas dessa estranheza que o filme se banha quase metade do tempo, com cada elemento por sua conta na fauna do navio, e sintomas de que algo manchou o passado que unia as três amigas. Na verdade, elas nem têm grande plataforma de diálogo. Alice vive num patamar intelectual acima, com o prestígio de autora que publica a espaços e burila cada palavra, e as outras duas são ávidas leitoras de um famoso escritor de thrillers - por acaso, também a bordo - que a primeira despreza com ligeira altivez enquanto profissional da área.
Para criar um clima romântico no alto-mar, há ainda uma passageira que tenta esconder a sua presença de Alice: a agente literária (Gemma Chan). Ansiosa por perceber exatamente que material a escritora anda a produzir longe da vista de todos, ela encontra-se em segredo com o sobrinho da cliente pedindo-lhe que faça uma espécie de serviço de espionagem, sem cuidar que o pobre rapaz se possa apaixonar no processo das noturnas "reuniões de trabalho" disfarçadas de lazer...
Nesta teia narrativa o que salta à vista é a tal estranheza e imprevisibilidade humanas, muito características da literatura de conto de Deborah Eisenberg. De facto, a filigrana do argumento original combina bem com o gosto de Soderbergh por uma certa espontaneidade e auscultação moral das personagens, que se reflete sobretudo na larga primeira parte do filme, e na própria génese da rodagem improvisada, rápida e económica em que assenta Let Them All Talk, aproveitando a boleia do elegante Queen Mary 2 de Nova Iorque para Southampton (em agosto de 2019).
Se até aqui há um sentimento, apesar de tudo, leve, o ponteiro emocional muda quando os pés assentam em terra firme. A progressão das dúvidas alimentadas na viagem chega a um ponto dramático que faz cair a estrutura e revela o enigma em torno da personalidade/comportamento ambíguo de Alice. Esta, naturalmente ancorada naquela expressão única de Meryl Streep que muitas vezes consegue forjar o desconforto ideal entre a simpatia distante e a melancolia sóbria. Uma faceta, a última, apenas exposta ao sobrinho.
Justamente a personagem que serve de barómetro das situações - parece ser em Tyler/Lucas Hedges que Soderbergh faz um exercício de leitura da maneira como nós, espectadores, assistimos ao teatrinho do mulherio com contas a ajustar. Quer dizer, a câmara fixa-se com especial deleite no rosto dele, deixando que algumas cenas aconteçam no chamado fora de campo e sejam interpretadas através de um espanto juvenil que espelha o nosso, independentemente da idade.
Para além disso, se por breves momentos pressentimos notas de romance segundo An Affair to Remember (1957), de Leo McCarey, ou comédia de enganos no rasto das aventuras de Marilyn Monroe e Jane Russell em Os Homens Preferem as Loiras (1953), de Howard Hawks, é porque Soderbergh, sem necessidade de citar, deixa a porta suficientemente aberta para circularem referências no ambiente de um transatlântico. Há um encanto pouco óbvio nesta urdidura de cinema.
*** Bom
por Rui Pedro Tendinha
A Broadway chega à Netflix com todo o brilho e o flash que se exige. Ryan Murphy, fresco da série Hollywood, oferece-nos uma adaptação do musical de Matthew Sklar, sucesso de 2018 que documenta as peripécias de um baile de formatura de uma pequena cidade do Indiana quando uma aluna de 17 anos é impedida de participar por assumir ser lésbica.
Um impedimento que se torna notícia viral e que leva até ao Indiana quatro veteranos "flamboyant" da Broadway para participarem numa "causa célebre" e, assim, ganharem mediatismo. Temos uma Nicole Kidman como corista esquecida e uma Meryl Streep como vedeta diva dos palcos em modo de decadência. A dada altura, o colorido e a azáfama dos "cromos" da Broadway transforma a dinâmica do pequeno liceu e a própria perceção preconceituosa de uma comunidade.
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Filmado com uma direção artística e cromática que parece encadear tudo o resto, The Prom é uma prova de liderança da linguagem visual do criador de Glee. Ryan Murphy reforça aqui um imaginário literalmente "queer" muito autoral.
É como se fosse um filme feito para reiterar um princípio estético que obedece a regras expressas: cores em abundância, excesso, mais excesso e um pragmatismo de ritmo que evita qualquer silhueta de subtileza. Um musical que não quer ter ideias de cinema, apenas soluções do vínculo da Broadway em imagens. Tudo cansa muito, em especial uma nada disfarçada vontade de celebrar o orgulho "queer". Aliás, nem é o politicamente correto da mensagem tolerância gay numa América do interior e preconceituosa, mas sim uma dose açucarada de pieguice "camp" que poderia ser divertida e não é. O filme não começa mal e alguns números musicais são coreografados com genica mas logo após o primeiro baile de formatura tudo acaba por sugerir um efeito de repetição.
"Ao menos" (as aspas são mesmo precisas), The Prom será lembrado por mais uma vez termos Meryl Streep em modo musical. Uma Meryl a "reencantar", talvez ainda com mais fulgor do quem em Caminhos da Floresta, Recordações de Hollywood, A Morte Fica-vos Tão Bem, os dois Mamma Mia! , O Regresso de Mary Poppins, A Praire Home Companion - Os Bastidores da Rádio e Ricki e os Flash, onde ia dos blues ao rock. Nota-se que quer a dançar, a cantar e a ser "over the top", a lendária atriz está a ter um prazer dos diabos, tal como Nicole Kidman, numa personagem a evocar Bob Fosse. Nicole está em grande forma física e contagiada com a alegria berrante do universo de Ryan Murphy.
Quanto a James Corden, algo crucificado por uma certa imprensa americana pelos modos caricaturais como dá vida a este ator cabotino de musicais, a sua atuação não é propriamente memorável, mas o homem do Carpool Karaoke, poderá estar a vítima de uma discussão bem no centro do furacão em que se advoga que as personagens de homens gay deveriam ser interpretadas por homens gay...
Embrulhado como filme LGBT para toda a família nesta quadra natalícia, The Prom tem os temas certos da causa sobre o direito à igualdade sexual mas falha como espetáculo de puro prazer escapista. Em última instância, parece feito "a la carte" para uma subvenção daquilo que se entende um filme Netflix, onde o algoritmo está ao serviço do público alvo, dos adolescentes aos fãs da tia Meryl...Não é um desastre, mas não deixa de ser uma desilusão.
** A ver