Marvel a martelo

O novo filme do super-herói de Chris Hemsworth marca o regresso da personagem de Natalie Portman como algo mais do que "a namorada de". Thor: Amor e Trovão tem a assinatura humorística de Taika Waititi mas não deixa de prestar continência à máquina Marvel.

Já lá vai o tempo em que Taika Waititi fazia filmes de baixo orçamento, como What We Do in the Shadows (2014), reunindo um grupo de amigos para uma brincadeira de vampiros na era moderna. Depois de ter relançado, com Thor: Ragnarok (2017), a saga individual do deus nórdico que os dois filmes de Kenneth Branagh começaram por tornar insignificante, o neozelandês volta a tomar as rédeas deste universo com Thor: Amor e Trovão, tendo o seu nome sido já associado a um novo projeto Star Wars... Caso para dizer que a irreverência traquinas de Waititi conquistou a indústria, talvez criando uma esperança (ou ilusão?) de que o seu tratamento humorístico de material há demasiado tempo a levar-se a sério pudesse representar, pura e simplesmente, o remédio milagroso para a fadiga arrastada da Marvel. Enfim, não será assim tão simples.

Quarto capítulo da história do super-herói encarnado por Chris Hemsworth, Thor: Love and Thunder, marca também o regresso de Natalie Portman, que surgia nos dois primeiros filmes como Jane Foster, uma astrofísica e astrónoma reconhecida que se tornou a namorada terráquea de Thor. Ela reaparece, porém, num estado de saúde muito grave. Com um cancro em fase avançada, acaba por descobrir a super-heroína que há em si, empunhando o martelo do seu ex-namorado deus do trovão e fazendo nascer uma variante feminina: The Mighty Thor (a Poderosa Thor). É um reforço bem-vindo na equipa, numa altura em que Thor, mais musculado do que nunca e entregue a uma descontração pueril, deve enfrentar um vilão chamado Gorr, conhecido como o carniceiro de deuses, com um passado trágico escancarado que procura "humanizar" a nossa perspetiva dessa figura maléfica interpretada por Christian Bale.

Pelo meio ficamos também com um vislumbre da Disneylândia em que se transformou a terra de Thor, Asgard, onde se fazem visitas guiadas e peças de teatro sobre a mitologia local (com atores convidados como Matt Damon), sem faltar uma paragem no templo de Zeus (Russell Crowe em modo apalermado, sem graça) para solicitar o seu apoio na luta contra o malvado Gorr. Digamos que o raio dourado de Zeus pode dar imenso jeito nesta enésima missão de salvar... o mundo? Já não se sabe muito bem o que é que se está a salvar, embora haja crianças sequestradas metidas ao barulho. Interessa é seguir em frente.

A filosofia por detrás de Thor: Amor e Trovão salta à vista no intento estético referido por Waititi numa recente conferência de imprensa: "Uma paleta bombástica, barulhenta e colorida, que refletisse vans pintadas com spray nos anos 80 e capas de álbuns de rock." A ideia tem rasgo, até se perceber que em termos práticos corresponde a uma salgalhada narrativa e visual, deixando qualquer cena, mesmo que supostamente emotiva, sujeita à subnutrição de realismo. É tudo demasiado "a brincar" para que se possa colher alguma resposta empática em cenários diferentes a cada porção de minutos.

Já se percebeu, desde Thor: Ragnarok, que o toque de jovialidade foliona de Waititi é o que o distingue do heroísmo cabotino dos dois primeiros títulos assinados por Branagh - este provavelmente pensou que estava a fazer Shakespeare para adolescentes. Aí está, sem dúvida, um ponto a favor de Thor: Amor e Trovão, que não mais se confunde com as origens pateticamente dramáticas do super-herói. O realizador identificou a fraqueza do registo e pôs na centrifugadora os elementos mitológicos, extraindo um humor capaz de revestir Hemsworth de uma espécie de carisma patusco.

Portanto, se havia um conceito bem definido, juntando-se a isso a introdução da nova super-heroína, o que falta para ser revolucionário? No mínimo, existir enquanto objeto de cinema que valha como tal. Thor: Love and Thunder, na sua transparência de intenções, é um naco de diversão mais ou menos conseguida, até deixar de ser e varrer-se da memória do espectador. As piadas são de tal maneira parte da engrenagem, que a certa altura já não damos conta do seu pretendido efeito refrescante. E mesmo aquelas que se repetem ao longo do filme como uma pontuação insistente - exemplo de duas cabras que gritam de forma irritante sempre que aparecem - convertem-se em meros sinais de um alegre infantilismo de marca registada.

Tudo isto para se chegar à conclusão de que Taika Waititi não será o salvador da Marvel. O seu tom de leveza, que veio disfarçar uma endémica falta de imaginação, não trabalha exatamente para padrões diferentes dos que têm assegurado a linha de montagem dos estúdios (e convenhamos que a máquina já acusa cansaço há algum tempo). Apesar de realçar a tal dimensão paródica, não se pode dizer que o enfant terrible neozelandês saia do mais básico programa rotineiro destinado aos fãs. O hamster Marvel continua na rodinha, e Waititi limita-se a desarrumar um pouco a fórmula - o suficiente para se sentir o registo arejado -, mas não está para grandes liberdades ao nível da desconstrução do "filme de super-heróis". Contas feitas, sai-se da sala com um travo de oportunidade perdida, um reconhecimento do esforço cómico e uma total indiferença em relação ao destino das personagens.

dnot@dn.pt

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG