Marta Pessoa: “Não há colonialismo bom”
"Portugal não é um país racista”, lê-se no ecrã com fundo negro. Como se sente o espectador perante tal frase? Terá tempo para lidar com isso. O tempo de duração do filme, Rosinha e Outros Bichos do Mato, que tira do baú a primeira exposição colonial portuguesa, de 1934, e se debruça sobre as suas fotografias, textos oficiais e outros registos, a fim de colocar uma mentalidade (falsamente) longínqua em diálogo com os nossos dias. E para o concretizar numa ideia de documentário com respiração própria, a realizadora Marta Pessoa convocou também corpos do presente – em particular, a atriz Binete Undonque –, para dar voz contemporânea às mágoas que se prolongam na cor da pele. Hoje, pelas 19h, há uma sessão comentada no Cinema City Alvalade, em Lisboa, com Marta Pessoa e a investigadora Aurora Almada e Santos.
Rosinha e Outros Bichos do Mato parte da exposição colonial de 1934, no Palácio de Cristal (Porto), para refletir sobre a nossa negação enquanto país racista. Porquê esta específica memória, e o uso dos documentos a ela associada, para falar aqui do colonialismo português?
A exposição sempre esteve no centro do documentário, mesmo que o documentário não seja só sobre a exposição. Haveria muitos outros exemplos históricos que podia pegar para refletir sobre as questões coloniais, mas a verdade é que descobri esta exposição. E “descobri” é mesmo a palavra, porque ela era muito pouco conhecida, e continua a ser. O que também me faz tentar perceber o porquê... embora eu tenha mais perguntas do que respostas. A exposição mais conhecida é de facto a do Mundo Português [1940], talvez por ter sido realizada em Lisboa. E esta absorveu a lógica de se entender o que foram as exposições durante o Estado Novo. Daí que me tenha chamado a atenção a de 34, que acabei por cruzar mentalmente com duas coisas: um filme do Abdellatif Kechiche, Vénus Negra [2010], sobre a Saartjie Baartman, uma mulher que foi posta em exposição, e um artigo no Público de uma investigadora, Filipa Lowndes Vicente, que falava da exposição do ponto de vista feminino. Foi aí que aprofundei conhecimentos, estando convencida de que na história colonial portuguesa haveria uma situação semelhante à da Saartjie Baartman. Isto numa altura em que se começou a ouvir com muita frequência, e uma certa energia renovada, que “Portugal não é um país racista”. Na comparação com os outros, nós não tínhamos sido maus... O ponto é: não há colonialismo bom.
Este é então um filme para nos confrontar com evidências.
Diria antes com as provas do crime. Tem uma dimensão criminal. O certo é que hoje quase nada existe de vestígios da exposição no lugar onde esta aconteceu, os jardins do Palácio de Cristal, que na altura foram convertidos – e é preciso chamar as coisas pelos nomes – num zoo humano. Aquele foi o momento perfeito para se ensaiar a propaganda do regime, desde as fotografias ao conceito jornalístico, passando pelas publicações, atas, revistas, etc. Está ali todo um discurso ideológico.
Rosinha, a nativa guineense que surge numa das imagens mais conhecidas da exposição, é uma figura, um símbolo, e acima de tudo, uma mulher com o seu quê de mistério. Tornou-se uma ideia fixa, dentro do “movimento” dos materiais de arquivo?
A Rosinha é um enigma. É apenas uma das 300 e tal pessoas que foram trazidas naquela situação, e tornou-se a metáfora daquilo tudo. Ou seja, de um lado havia o império – masculino, viril, da exploração das colónias –, do outro estava o corpo disponível, assim como a terra que estava disponível, sem voz, sem ação, sem existência para além da que lhe era atribuída. Basta ler as legendas desses materiais de arquivo, que se referem às mulheres e aos homens com termos como “dois exemplares bijagós” ou “belezas indígenas”... Veja-se, para os homens até era muito usado o “torso expressivo”.
Neste documentário, o cinema parece assumir o propósito de tirar a memória coletiva do contexto estático e “adormecido” próprio de uma exposição. Foi isso que procurou?
Uma exposição tem sempre dois lados: o ver e o ser visto. Mas falando da criação de imagens para aquela exposição, as fotografias oficiais de Domingos Alvão, aquilo era estático em cima de estático, porque ele estava a retratar situações que não eram reais, mas que era suposto serem naturais, e havia ainda a camada de estático da ausência de voz dos retratados. Indo ao encontro da sua pergunta, isto foi como abrir uma caixa fechada e arrumada a um canto, um assunto fechado. Tentei dar vida ao arquivo, usando-o.
Faz-se aqui uma relação entre o passado e o presente através de performances de palco. É uma maneira de encurtar a distância temporal e provocar reflexão?
Foi um pouco essa a ideia, sim. Para repensar aquelas posições, só havia dois grupos que o podiam fazer: os nativos, que eram a mão-de-obra nas colónias, e os portugueses regionais, neste caso, as mulheres minhotas, que de certa forma também estavam ali em exposição para dizer “os portugueses são assim”. Foram os dois grupos usados para o discurso.
Vivemos numa sociedade e num mundo saturados de imagens. Também enquanto diretora de fotografia, sente que por vezes passamos pelas imagens sem as valorizar o suficiente?
Sim. E às vezes as imagens estão completamente fora do contexto, dão azo a equívocos que nunca mais acabam, a repetições de atos de violência, ao mesmo tempo que não se dá atenção às palavras. Por isso é que pus um ator a ler. Justamente para que a linguagem tenha a sua correspondência visual. Mas sendo eu do mundo da imagem, sei também qual é a força de não a ter – por isso é que às vezes o discurso vem com um fundo negro... Perante as provas que os arquivos nos dão, com tudo o que sabemos que aconteceu em 1934, em 1940, e em 1932 [uma aldeia com indígenas da Guiné recriada no Parque Eduardo VII], vamos morrer todos nesta estupidificação constante e crescente?