Faina é o título deste seu novo livro. É uma palavra que lhe sai naturalmente? Estive até ao último momento a pensar no nome que daria ao meu primeiro romance, Escavadoras, e desta vez a palavra Faina chegou ainda antes do texto. Não tropecei noutras. Vejo nela muita força. Fiquei muito feliz com o trabalho gráfico da Susana Villar na capa do livro, que constrói a palavra com uma letra alta que remete para as tábuas dos barcos ou as paliçadas que vemos na praia. Além de que tem uma ilustração da minha irmã Ana de que gosto muito..Qual a sua ligação pessoal ao mar, aos pescadores e à arte-xávega? A minha família não está ligada ao mar, os meus avós lavraram o campo. Cresci e estudei em Espinho, que tem um bairro piscatório e mantém a pesca artesanal. O imaginário marítimo sempre me atraiu. Hoje a arte-xávega é uma prática rara e quis começar um processo de investigação para aprender mais sobre quem vive a alar as redes para terra..Para a escrita deste romance sentiu a necessidade de ser um pouco antropóloga como forma de preparação? Sim, interessou-me muito fazer essa investigação no terreno para pensar onde cabe a sobrevivência de quem pesca e onde cabe a paixão. Passei madrugadas e manhãs na Praia dos Pescadores, em Espinho, a ver o barco sair para o mar e voltar, e fui conversando com quem ali trabalhava. Falei com as mulheres que vendem o peixe. Quis ver de perto a interação humana com o mar, o que forma a cultura vareira, que ecologia de saberes se cruzam. Essa recolha etnográfica foi fundamental, aprendi muito, foram muito generosos comigo. Tentei várias vezes ir na companha, e só mais recentemente consegui. Como me ensinaram: não é quando a gente quer, não é como a gente quer, é quando o mar quer. O livro já estava escrito, agora terei de continuar..Há muitos romances que falam do mar e da pesca, desde O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, ao Pescadores, de Raul Brandão. Leu alguns destes, ou outros, para buscar inspiração? Li ambos, li Herman Melville, Ramalho Ortigão. As leituras alargaram-se a neorrealistas, como Esteiros de Soeiro Pereira Gomes. Li As Ondas de Virginia Woolf para uma certa música meditativa. Além dos romances, foi muito importante a pesquisa levada a cabo no Museu Municipal de Espinho, e os seus Cadernos de Espinho, com pesquisa histórica de Armando Bouçon, para estudar acontecimentos daquela geografia que quis trabalhar, como a construção da Fábrica de Conservas Brandão Gomes ou do caminho-de-ferro, o crescimento da estância balnear, a vinda do Casino, a criação de novos hábitos culturais em confronto (ou harmonia) com a tradição dos bois a puxarem as redes do mar. E depois há tudo o que ouvi. Interesso-me muito pela tradição da história passada de geração em geração, por lendas, mitos, romarias, pelas canções, pela graça do vernáculo. Isso são textos muito vivos: contados, cantados. .Tirando uma nota de cedência parcial de direitos de autor, não há indicação do local da ação. Também a data é imprecisa, sendo que a fábrica de conserva ter a palavra real no nome nos envia para a época final da monarquia. Foi propositado? Onde se passa afinal esta semana da Grande Pesca e quando? Atraem-me espaços e tempos diluídos. Apesar de o livro partir desta pesquisa sobre a história de Espinho, é uma ficção. A ação passa-se numa praia do Atlântico Norte, o corte temporal vai do fim de um período oitocentista ao arranque do século XX, principalmente a sua primeira década. Também existem subtis interferências, saltos espaciais e temporais. O livro não se constrói de forma linear..É evidente em Faina a vida dura, a pobreza, as mortes no mar. Não se sentiu tentada a dulcificar a vida dos pescadores? A romantizá-la? Quis muito afastar-me desse caminho e tentei ser vigilante quanto aos lugares-comuns. Tento retratar um ofício de enormes esforços físicos, as redes puxadas à força de braços e de animais, ofício de perigos e carências. O mar pode ser simbiose ou luta, a mesma água que embala também sepulta. Eram tempos muito duros de opressão, de fome, vivia-se um profundo analfabetismo. Mas se nesta história há quem se lance ao mar por não ter outro caminho e tudo conduzir à pobreza, há também quem se lance por um apelo que não cessa. As personagens do arrais Assobio e do jovem Assobio constroem-se em torno de diferentes obsessões e motivações para entrar no barco..FainaMarta Pais OliveiraGradiva359 páginas19,50 euros.As figuras femininas sobressaem. Têm uma força especial. Sentiu que era mesmo assim entre as gentes do mar da época que retrata? Os retratos que li estão muito centrados no esforço dos pescadores, muitas vezes assumem o tom de canção heróica. Miguel de Unamuno fala dos barcos de arte-xávega como naves homéricas. São os homens que vão ao mar e o mar é, naquele tempo, um território vedado às mulheres. E isso, em parte, ainda se mantém. Vemo-las em terra a vender o peixe. Mas há um trabalho imenso e invisível antes do pregão. Quis pensar as prisões que viviam, e como puderam alargar liberdades. Por isso há, neste livro, mulheres que não esperam na praia e querem ir ao mar, como a Menina e a Senhora da Fábrica, e mulheres que precisam de novos nomes, como A do Moreno. E conto uma história dos dias de hoje. Quando comecei a escrever o livro, em 2021, assistia ao trabalho de uma companha que, neste momento, não está a trabalhar. A mulher do dono da embarcação adoeceu, a companha parou. E o pescador explicou que era ela quem geria aquilo tudo, se era preciso um prego, era ela que sabia comprar o prego. Estas mulheres seguram o mar..Aquele cruzamento dos pescadores com a burguesia e a intelectualidade que surge a dado momento no livro tem uma base de realidade? Espinho, ao crescer designado de “Rainha da Costa Verde”, atraiu muitas pessoas diferentes, era um dos principais pontos de veraneio. Enquanto a Granja, por exemplo, era a praia das elites e da aristocracia, Espinho era a praia democrática e tinha a confluência de muitos grupos sociais. Onde uns iam pescar e vender o peixe, passeavam-se empresários, pintores como Amadeo de Souza-Cardoso, estrelas de cinema. É fascinante ver, por exemplo, as fotografias de Aurélio Paz dos Reis da Batalha das Flores, uma espécie de carnaval de verão que era tradição em cidades europeias como Paris e Veneza e que chegou a Espinho, com cortejo e tiroteio de flores. Vemos mulheres da nobreza com chapéus de largas abas sentadas ao lado de varinas de lenços pretos..No livro fala da chegada do mundo moderno, das fábricas e dos horários de trabalho. O mundo da pesca de que fala é uma coisa do passado, apesar de ainda haver companhas de arte-xávega, nomeadamente em Espinho? Esta pesca artesanal resiste com dificuldade. O mundo está sempre a acabar e está sempre a começar. E tudo tende para o esquecimento, mesmo a palavra. Algumas histórias continuam a ser contadas, Mário Cesariny falou das palavras acesas como barcos, e enquanto uma história é contada vive. Não me interessa a tradição cristalizada, mas sim entender como se pode reinventar e transformar. Uma pesca desta dimensão é esmagada pela pesca industrial, pelos grandes arrastões. Ao mesmo tempo, penso que vivemos tempos em que percebemos que os recursos planetários são finitos, que crescer sem limites tem um revés, e procuramos soluções comunitárias que possam regenerar mais do que destruir. Não se trata de manter condições difíceis e incertas de trabalho, de abdicar da tecnologia ou da inovação - tudo isso serve para melhorar a nossa vida. Mas trata-se da máquina dar mais tempo humano. Tempo humano passa, também, por tecer o que se rompeu, que é um gesto que ainda vemos o redeiro fazer. O Sr. José Barros remenda as redes da companha que está a ir ao mar, e mais ninguém aprendeu esse ofício. Vai ainda alguém aprender? E a arte-xávega não é só um barco lançado às ondas, é todo o património imaterial associado, o cancioneiro, os trajes, as crenças. Em Faina tento fazer perguntas sobre raízes, origens, procurar ensinamentos dos avós dos nossos avós. O que é que forma uma identidade? Que eco chega a quem ainda não nasceu? Faço perguntas sobre o deslumbramento que o progresso traz, tento retratar uma comunidade piscatória que vive a grande expectativa da construção da Fábrica de Conservas. Vem a questão da criação pela destruição. Para algo novo crescer é preciso destruir o que veio antes? Ambos podem coexistir? O futuro assume forças diferentes, primeiro anuncia-se com estrondo, com o tempo entende-se que não chega da mesma forma para todos. Quis refletir sobre como liberta de tantas misérias e, ao mesmo tempo, que novas e complexas prisões pode criar, que espaços nascem privados de afeto e de memória. Que futuro pode ter uma pessoa desmemoriada.