Podemos culpar Denis Villeneuve. Graças a ele, ou melhor, às duas partes da adaptação de Dune por si realizadas para o grande ecrã, chega agora ao streaming uma narrativa associada ao universo dos livros de Frank Herbert. Não se trata de uma continuação e, em rigor, também não será uma tradicional prequela. É outra coisa. Dune: Prophecy, que se baseia no romance Sisterhood of Dune, de Brian Herbert (filho de Frank Herbert) e Kevin J. Anderson, passa-se 10.000 anos antes dos eventos em torno de Paul Atreides e explora a intriga da Irmandade Bene Gesserit, essa organização antiga, composta exclusivamente por mulheres, cuja influência moldou a evolução da humanidade, através de uma rede de aconselhamento político galáctico com interesses próprios. É então entre história e profecia que esta série HBO, de seis longos episódios, se apresenta amanhã na plataforma Max, renovando o espanto de quem já considerava os filmes de ficção científica de Villeneuve autênticas estruturas de design avassalador..Dito isto, esclareça-se desde já que o nome do cineasta canadiano não surge nesta grande produção. Propriedade da showrunner Alison Schapker, Dune: Prophecy tem a sua própria identidade mística, que se evidencia ora em planos abstratos – passíveis de se confundir com pesadelos lindos – ora em arquitetura sombria e deslumbrante. Não se sabe bem onde começam uns e acaba a outra, mas é certo que a seita Bene Gesserit é indissociável destas imagens, quer pelo modo intenso com que treina os seus rituais, quer pela “matemática” com que atua nas Casas nobres. Aí, cuidado com a Madre Superiora Valya Harkonnen, interpretada por Emily Watson....Foto: DR.Na campanha de promoção da série, chegámos à fala com o principal soberano desta temporada, o imperador Javicco Corrino, a quem Mark Strong oferece uma elegante postura de intranquilidade. E o próprio confirmou ao DN essa primeira impressão, retirada dos episódios iniciais que foram disponibilizados à imprensa: “Ele é certamente inseguro. Mas enquanto imperador – alguém que está no comando, que tem de se sentar no trono e causar boa impressão nos líderes das outras Casas nobres – não se pode permitir a mostrar essa insegurança. Até porque todos os ditos líderes tentam obter dele alguma coisa, e aí é preciso dar sinais de quem é que manda. Mas é verdade, sem dúvida: Javicco está em terreno muito instável, e isso será o que torna a personagem interessante. Acho que a versão normal de um imperador, rei, ou qualquer pessoa numa posição de poder, é muitas vezes interpretada com autoridade. E o que é fascinante neste tipo é que, tendo ele essa autoridade, não é muito bom a exercê-la!” (risos).Como verdadeiro gentleman britânico que é, Strong responde generosamente a cada pergunta da mesa-redonda de imprensa e delicia-se com as questões relativas ao vestuário e design, ou não fosse ele um daqueles atores que aparecem quase sempre bem “desenhados” pela roupa que têm sobre a pele; pense-se nos filmes Kingsman ou no vilão do Sherlock Holmes de Guy Ritchie, só para começar..“Inicialmente havia uma ideia de que Javicco poderia vestir túnicas, isto é, uma indumentária mais informal. Mas acho que a estética apresentada nos livros originais, assim como nos filmes, apontam para um mundo militarista, e por isso fazia sentido que ele tivesse este aspeto militar – também tem que ver com a questão da aparência da autoridade”, explica, em relação ao perfil da personagem..Foto: DRA Irmandade Bene Gesserit nos seus rituais..O que leva a outro mergulho na memória pessoal de estar no interior de um set fora da escala comum, e transparente nas suas ganas épicas. Como descrever a sensação? “Os cenários eram fenomenais, tenho de o dizer. Eram grandes e impressionantes ao ponto de não se compararem com nada em que eu tenha trabalhado antes, falando de estúdios. E isso significa o mínimo de representação – quando estás sentado num trono dentro de uma sala enorme e maciça, de arquitetura genial, com 50 pessoas a entrar pelo centro, não é preciso muita imaginação para acreditares que estás mesmo ali... Foi tudo primorosamente manufaturado”, sublinha..O design do drama, o drama no design.Fica-se com a noção de que a magnitude apreciada no ecrã não é um simples projeto digital para encher o olho. Nesse domínio, o ator que se destaca sobretudo em papéis principais na televisão inglesa, por contraste com os secundários no cinema americano, desforra-se aqui com uma figura que habita a própria linguagem do entorno majestoso. Mais uma vez em resposta ao DN, conta como se surpreendeu já depois da rodagem concluída: “Ver os episódios acabados ultrapassa tudo o que poderíamos ter em mente. Há uma sequência maravilhosa no primeiro episódio em que me é dada uma espécie de peça de vidro, com conteúdo lá dentro, que insiro numa mesa como um plug-in e aparece sobre o tampo a imagem do Desmond Hart [o soldado interpretado por Travis Fimmel] a ser como que sufocado por um verme de areia... Na realidade, quando o filmámos, eu estava a olhar para nada! Havia apenas alguns pontos na mesa que indicavam a ação do que era suposto a minha personagem estar a ver. Isto é o puro faz-de-conta do nosso trabalho, que se conjuga posteriormente com o design visual.”.Para quem acha que esta revelação pode estragar a magia da sequência em si, está enganado. A solidez de Dune: Prophecy tem muito que ver com a força imponente, inclusive simbólica, de cada imagem, que define as suas leis de interpretação. E recorde-se: Paul Atreides não faz parte deste esquema, assim como um certo morcego humano não aparece em The Penguin, o outro grande lançamento recente da Max, onde Mark Strong também tem um papel (é o pai da vilã Sofia Falcone). Usando como exemplo essa outra série, o ator diz que, a propósito dela, leu “algumas análises bastante elucidativas sobre o facto de estarmos a lidar com o mundo do Batman sem ter o Batman – ele está ausente. E isso torna tudo mais interessante, porque nos conduz para uma dimensão marginal que quase nunca se vê. O mesmo se aplica a Dune: Prophecy: nos filmes ficamos a conhecer a relação de Paul Atreides com a sua mãe, e como eles se saem em Arrakis, naquele cenário deserto, arenoso e empoeirado; ao passo que aqui se revela outro olhar sobre o mesmo universo, agora sombrio, cinzento, metálico, a lidar com o establishment da irmandade Bene Gesserit.”.Outra dimensão, mas ainda assim sujeita ao escrutínio dos espectadores mais atentos aos detalhes comparativos. “É preciso ter em conta que há muita gente que realmente adora este universo e o sabe de cor”, reconhece Strong, sem se sentir necessariamente intimidado. “Tens mesmo de fazer o trabalho de casa à volta da personagem que estás a retratar, o modo como ela se relaciona com as outras personagens, etc. Porque quem quer que tenha lido os livros perceberá imediatamente que há ali uma nota falsa – isto se não acreditar no que estás a fazer. Mas em vez de olhar para esse aspeto como pressão, vejo-o como motivação. Faz-me querer fazer bem. É importante para mim que os fãs de Frank Herbert se sintam satisfeitos com o que veem.”