Tudo partiu do sentido de causa de Mark Ruffalo. Ativista ambiental, o ator, que vimos várias vezes na pele de Hulk, mas também no perfil de mangas arregaçadas de um jornalista em O Caso Spotlight (2015), decidiu-se pela fibra moral deste segundo registo para assumir a personagem real de Robert Bilott, "o advogado que se tornou o pior pesadelo da DuPont" - como se lê no título do artigo da The New York Times Magazine que, precisamente, serve de base a Dark Waters - Verdade Envenenada..O filme, assinado por Todd Haynes e coproduzido pelo próprio Ruffalo, conta a história de um herói improvável, ao mesmo tempo que faz a crónica de uma certa malaise americana. De resto, o tipo de crónica que não intimida o realizador de Veneno (1991)..O caso de Robert Bilott, que remonta ao final dos anos 1990, começou com um pedido inusitado: ele, advogado em Cincinnati, porta-voz corporativo a trabalhar em defesa de empresas químicas - entre as quais, a gigante DuPont -, é abordado na sede do seu escritório por um agricultor zangado (Bill Camp, brilhante secundário), residente na Virgínia Ocidental, que lhe pede ajuda para denunciar uma suposta ação nociva da DuPont..A saber, este homem com sangue na guelra acusa a empresa de causar a morte do seu gado ao despejar resíduos químicos nas águas onde os animais vão beber. E se, a princípio, Bilott/Ruffalo não se vê a mudar completamente as regras do jogo empresarial para acudir alguém desfavorecido, é quando se decide a visitar a propriedade do tal agricultor que o advogado percebe, por força das evidências, que algo de muito estranho se passa ali: não há nada de cor verde no seu campo de visão, que ademais depara com um verdadeiro cemitério de vacas..Aquilo que a princípio seria apenas o mero esclarecimento de uma situação irregular converte-se, assim, numa morosa e aturada investigação de arquivos que inclusive leva à descoberta, por parte de Bilott, de uma substância tóxica (PFOA) não reportada pela DuPont como perigosa para a saúde pública, e presente na composição do famoso teflon, o revestimento anti-aderente das frigideiras que foi a invenção do pós-Segunda Guerra Mundial mais lucrativa da empresa química....Assinalando a pesada passagem dos anos, Dark Waters cresce ao sabor desta investigação (com minuciosa recolha de provas científicas) que facilmente se inscreve na febre e linhagem de filmes sobre denunciantes como A Última Testemunha (1974), de Alan J. Pakula, O Informador (1999), de Michael Mann, ou até, do ponto de vista temático, Erin Brockovich (2000), de Steven Soderbergh. Com uma grande particularidade: sendo uma realização de Todd Haynes, um dos nomes-chave do cinema independente americano, o olhar sobre a textura (melo)dramática não é um aspeto paralelo à dinâmica concreta do processo "thrillesco", mas sim o aspeto fundamental. Ao trabalhar com factos, Haynes explora a dimensão simultaneamente real e metafórica do envenenamento progressivo, com reminiscências de um dos seus primeiros filmes, Seguro (1995), onde assistimos ao pavor de Julianne Moore, uma dona-de-casa alérgica a produtos tóxicos, a quem é diagnosticada uma misteriosa "doença do século XX"..É, pois, o mesmo sentimento sombrio, um desconforto permanente, que habita Dark Waters, desta feita com um protagonista muito pouco característico deste género de narrativa. Com efeito, o Robert Bilott de Mark Ruffalo (fiel à figura verídica) não tem o desembaraço de uma Erin Brockovich e nem sequer encaixa no perfil de um carismático e enérgico herói. Contido e nervoso, representa a antítese de tudo isso. E, em parte, por aí o filme adquire uma gravidade emocional singular. O espectador não está apenas a seguir a tremenda batalha deste homem contra o sistema, mas sobretudo o modo como a angústia moral foi o seu combustível para continuar, refletindo-se numa degradação física, psicológica e familiar. Se dúvidas houver, Ruffalo é admirável na conjugação subtil de tudo isso; desde logo na expressão corporal..Os momentos em que a escassa vida doméstica de Bilott é encenada - com uma sempre impecável Anne Hathaway no papel da mulher - mostram o quanto o seu bloqueio na intimidade contrasta com o empenho na causa que agarrou. E esse apontamento é precioso para observar no filme aquilo que é o toque específico de Todd Haynes, a sua habilidade para "investigar" o drama do protagonista, ao mesmo tempo que nos envolve numa atmosfera lúgubre e pardacenta potenciada pelo trabalho fotográfico do regular colaborador Ed Lachman..Dark Waters - Verdade Envenenada é um dos filmes mais intensos a chegar às nossas salas neste início de 2020, e vale para além da sua paixão e fúria política. É uma firme e comovente luta assumida por um homem frágil..**** Muito bom