Marc Raymond: “Demorei 10 anos a perceber que não sou um escultor, sou um construtor”
Quando, em criança, ajudava o pai a cuidar das vinhas aos sábados ou às quartas-feiras à tarde, quando não tinha aulas, Marc Raymond depressa percebeu que “não era feito para a terra”, apesar de saber desde muito jovem que queria “trabalhar com as mãos”. É dessa altura, quando jogava à bola com os filhos dos portugueses na praça da aldeia de Saillon, perto de Martigny, onde nasceu, no cantão suíço de Valais, que data a sua primeira ligação a Portugal. “O meu pai tinha um casal de portugueses que trabalhava para ele. E havia muitos portugueses na aldeia”, recorda agora o homem cuja paixão pelo trabalho manual havia de levar à escultura. No seu apartamento em Campo de Ourique, rodeado por algumas das suas obras, Raymond conta ao DN como a vida acabaria por o trazer a Lisboa, onde vive há três anos com a mulher, diplomata grega que conheceu… na China.
“Com a minha irmã, uma das primeiras viagens que fizemos foi a Portugal. Fomos de Braga a Faro. Tinha 19 anos”, recorda Raymond, sentado no sofá, diante de uma parede onde se veem uma das suas obras em madeira e duas em papel recortado. Na altura, enquanto percorria o país, aproveitando as amizades que tinha na Suíça, não imaginava que passadas mais de três décadas voltaria para se instalar com a família em Portugal, onde a mulher foi colocada. Mas como é que um suíço e uma grega se conheceram? “Conhecemo-nos na China!”, exclama com um sorriso, antes de explicar: “Eu estava a fazer uma longa viagem pela China durante um ano. A Giorgia estava a fazer uma viagem de três semanas. Uma noite cruzámo-nos. E começámos a escrever-nos.” Dessa correspondência nasceu a oportunidade de visitar Giorgia em Madrid, onde esta vivia na altura, e o resto é história.
Há três anos a viver em Lisboa, Raymond garante que quando surgiu a oportunidade de virem para Portugal não hesitaram. Apesar da sua relação antiga com portugueses, o escultor confessa que ficou “agradavelmente surpreendido” com a simpatia das pessoas: “O respeito, a simpatia, ficámos impressionados com o povo português.” A viver num dos bairros mais cosmopolitas da capital, confessa que o seu português não tem melhorado tanto quanto ele gostaria. E em casa, qual é a língua de comunicação. “Francês, a Giorgia fala muito bem francês.” Já com o filho adolescente, “eu falo francês, a Giorgia fala grego. Temos feito isso desde que ele era pequeno e funciona muito bem”.
Voltando à escultura, Raymond confessa que esta vida itinerante nem sempre é fácil. Neste momento, por exemplo, não tem um estúdio, trabalhando em casa. Mas como é que o filho de um viticultor se foi interessar pela escultura, foi sempre uma paixão? “De todo! Foi mais uma evolução”, explica. O desejo de fazer algo com as mãos começou por o levar à marcenaria. “Queria ser marceneiro, queria fazer móveis.” E depois da formação acabou por trabalhar nesse setor durante algum tempo, mas “a marcenaria estava a tornar-se muito industrial, era preciso trabalhar cada vez mais depressa”. Foi nessa altura que Raymond descobriu a Escola de Escultura de Brienz, onde se formou, antes de abrir o seu ateliê em Saillon. “No início eu era um escultor mais artesanal. Não era bem um artista. Isso do artista veio pouco a pouco. Muitas coisas na vida são evoluções. Foi o que me aconteceu”, afirma.
Depois desta formação bastante tradicional - “fazíamos decorações para móveis, animais, figuras para as igrejas, etc.” -, admite que teve de “esquecer o que tinha aprendido na escola” para evoluir. Um pouco como quando passou de marceneiro para escultor, pois também aqui foi preciso apagar o que estava para trás para avançar “sempre devagar, passo a passo”. Foi assim que as suas esculturas se afastaram do figurativo para se tornarem mais abstratas. Raymond tem obras em pedra, sobretudo no início da carreira, em cimento, em bronze, mas é a madeira que vê como o seu material de eleição. Já a passagem para o figurativo surgiu sobretudo depois da sua viagem à China. “Quando voltei, houve mudanças. Não foi uma influência nem uma inspiração, mas o facto de estar sozinho, de estar longe, de viajar, começou a recentrar-me sobre mim mesmo. E quando voltei tive vontade de respeitar mais a matéria. Encontrar um velho pedaço de madeira e refletir”, explica. Um caminho para a sua arte que só foi reforçado pela sua passagem por Madrid, onde apreciou muito a obra de Eduardo Chillida. “Adorei as suas peças em ferro e em betão armado. E em 2005 decidi parar completamente com o figurativo e dedicar-me só ao abstrato”, vinca o escultor.
Chegados aqui, e questionado sobre a influência que as viagens e os diversos países onde já viveu tiveram na sua obra, Raymond faz questão de explicar um pouco melhor o seu processo criativo. “O meu trabalho é introspetivo. Não acredito na inspiração - as ideias para novas obras surgem-me enquanto trabalho. Parte de uma escultura dá-me a ideia para outra escultura ou para um recorte. Um recorte dá-me uma ideia para uma escultura”, conta. E acrescenta: “É uma evolução, como na vida.”
Confessando não ser simples de explicar como nascem as suas obras, o suíço lá tenta: “Não é uma coisa que vem de fora e que me faz feliz. Pelo contrário, vem de dentro. Claro que ter experiências fortes, ver pessoas novas, ver paisagens diferentes, tudo isso é absorvido e há sempre algo que mais tarde volta a sair.”
Isso significa que também não foi influenciado por outros artistas? Recorda que nasceu num meio rural, numa família mais ligada ao vinho do que às artes, mesmo se “tenho um irmão que quase se tornou fotógrafo e tenho uma irmã que pinta”. Quanto a artistas preferidos, volta a apontar Eduardo Chillida, também Anthony Caro - “são artistas que fazem construções, que montam coisas”. Uma paixão que talvez explique a admiração que Raymond confessa pelo arquiteto Frank Gehry.
E esse desejo de construir algo foi um ponto de viragem na sua obra. “Em vez de escavar a madeira como fazíamos na escola, em vez de tirar a matéria supérflua, de procurar a forma interior, ao fim de 10 anos a trabalhar assim percebi que sou um escultor, sou um construtor. Adoro juntar coisas, experimentar, virar ao contrário, ver o outro lado, juntar mais qualquer coisa.”
Mesmo um olho destreinado consegue ver essas características nas obras que nos rodeiam no apartamento de Raymond, que prossegue com a explicação: “Trabalho sempre em séries de várias obras - as sérias Rouges, Formes Noires, Interfaces, Constructions.” E sublinha: “Procuro sempre a simplicidade, mesmo se as obras puderem ter uma certa complexidade, sobretudo nos ângulos não retos. Procuro as tensões, o equilíbrio e o desequilíbrio, a coerência da escultura com as suas diferentes partes. Procuro ser eu mesmo, fazer algo único, estranho e pessoal.” Nesse aspeto destaca o princípio KISS - keep it simple and stupid -, desenvolvido por designers e informáticos americanos nos anos 70. “Procuro respeitar muito a matéria, ela é simples, deixo ver as asperezas, a madeira, o trabalho e as junções”, explica antes de resumir: “O meu trabalho é para mim uma imagem da vida, da minha vida interior com as suas tensões e aspirações. Amo e preciso de criar, de fazer algo novo com pouco.”
Com tantas mudanças de país - já passaram por Espanha, Canadá, agora Portugal -, Raymond confessa que nem sempre é fácil transportar o seu trabalho. “Recomeço sempre do zero”, admite, vincando que, por exemplo, quando tem uma exposição na Suíça - a última em que participou foi em 2019, mas faz parte de uma associação de artistas no seu país natal - vai trabalhar para lá durante um mês ou mais.
Talvez por isso em Lisboa, não tendo um ateliê, tem centrado o seu trabalho sobretudo em papel - “como trabalho em casa, tenho feito coisas em papel. Assim, se for à Suíça posso levá-las na mala comigo”. O papel , admite, também sempre o ajudou a ultrapassar os bloqueios que por vezes surgem quando está a trabalhar a madeira. “Quando me sinto bloqueado após várias semanas a esculpir, meto tudo de lado. Pego em papel, recorto-o com uma tesoura e junto-o, colo-o, meto alguma tinta. Muitas vezes pinto grandes folhas de preto ou vermelho e depois recorto-as em partes que tento juntar numa outra folha.”
Antes de nos despedirmos, não resisto a perguntar se alguém que viaja tanto pelo mundo não tem saudades da sua Suíça. “Há duas coisas de que sinto falta quando estou no estrangeiro: a minha família, porque somos uma família grande e todos eles estão na Suíça, e as montanhas”, confessa o escultor, antes de acrescentar a rir: “Aqui em Lisboa estou feliz” com tantas colinas. Criado num vale no coração dos Alpes, com montanhas com mais de quatro mil metros de cada lado, Raymond sublinha que essa paisagem pode não ser alheia à sua escolha profissional: “As rochas, as formas, as montanhas, afinal são esculturas. Talvez tenha vindo daí.”
E faz questão de garantir: “Fico feliz por ser suíço. Gosto do meu país. Gosto que tenha várias línguas nacionais, que haja várias mentalidades , várias culturas.”
Marc Raymond confessa que depois de uma exposição que está a organizar na Alliance Française de Lisboa, e que deverá inaugurar no próximo ano, gostaria de voltar a fazer uma exposição na Suíça. “Ainda não é nada de muito concreto, mas gostava.”