João Rodrigues Cabrilho português, com estátua em San Diego a homenagear o descobridor europeu da Califórnia, passou, depois de séculos, a ser questionado como possível espanhol. Pode relembrar qual o argumento tradicional a favor da nacionalidade portuguesa e como a historiadora canadiana Wendy Kramer tenta pôr isso em causa?O cronista real espanhol, Antonio de Herrera y Tordesillas, escreveu (c. 1615) que o descobridor da Califórnia foi “Cabrillo”, navegador português muito experiente nas coisas do mar. Em 2015, Kramer encontrou documentos onde Cabrilho declarou ser natural da atual Palma del Río, em Córdoba, Espanha. Na opinião dela ser natural implica necessariamente ser nascido. Isso pura e simplesmente não é verdade.A contestação do valor do “natural de” é um dos seus cavalos de batalha. Qual a razão porque o contesta, sobretudo aplicado a Cabrilho?É um velho erro, já ocorrido, por exemplo com o português João Dias de Solis, piloto-mor de Espanha em 1512. Sendo natural de Lepe e natural de Lebrija (localidades perto de Sevilha), para muitos autores espanhóis Solis nasceu em Espanha e, portanto, em dois locais. Um milagre. Aliás como no caso de Santa Teresa de Ávila, natural de Ávila e natural de Alba de Tormes (onde viveu parte da sua vida). De facto Santa Teresa nasceu “apenas” em Ávila, mas o assunto gerou décadas de disputa em tribunal com as duas localidades espanholas cobiçando a sua beatificação e ossos… O famoso piloto português Nuno da Silva, raptado por Drake, disse ser natural do Porto e natural de Lisboa, em depoimentos feitos à Inquisição Mexicana, sob tortura, e ao vice-Rei da Nova Espanha. Um estudo detalhado mostra que nasceu em Lisboa e viveu depois no Porto/Gaia onde casou. Podia, portanto, no contexto da época, considerar-se natural de Lisboa e do Porto. Vespúcio recebeu uma carta de naturalização dizendo que dali em diante seria considerado natural dos reinos de Espanha, como se lá tivesse nascido e sido criado. Francisco Pizarro disse no seu testamento que era “natural y nacido” em Trujillo, Espanha. Dezenas de teses de pós-graduação universitárias, livros e artigos científicos demonstram cabalmente que embora ser natural de uma localidade frequentemente significasse ser lá nascido, muitas outras vezes implicava apenas a naturalização, a obtenção de cidadania local (depois extensiva ao reino), pela qual aliás os estrangeiros tiveram mesmo que pagar na América espanhola. Não se trata, portanto, de uma tautologia, mas Kramer não perceberá isso, preferindo convenientemente desacreditar Herrera. O exemplo mais gritante do erro de Kramer é dado pelo historiador argentino Enrique de Gandía, que escreveu ser inútil (sic) usar a palavra natural para provar que uma pessoa nasceu em determinado local! Gandía escreveu um artigo sobre Juan de Garay, refundador de Buenos Aires, onde mostra que se pode ser natural de uma localidade por dez razões distintas, de acordo com as Leis das Sete Partidas do rei Alfonso IX. Pode-se, por exemplo, ser natural por nascimento, ou por casamento, ou por viver x anos num local, ou por pertencer a um senhor feudal, etc. Gandía dá ainda o exemplo de Alonso de Ercilla y Zúñiga (o autor dos famosos poemas La Araucana), que era natural de Bermeo (na Biscaia) e natural de Valladolid, mas nascido em Madrid! Creio que não é preciso dizer mais nada. O contraste não podia ser maior: entre o valor inútil de Gandía e a prova “irrefutável” de Kramer, os leitores são suficientemente inteligentes para perceber quem não estudou bem as leis de naturalização de Castela no séc. XVI.Cabrilho não é o único português ao serviço de Espanha, e nem sequer falo de Fernão de Magalhães e dos pilotos e cartógrafos da sua célebre expedição. Falo da própria costa do Pacífico entre a América Central e a atual Califórnia. São mesmo muitos os exemplos?A 1 de janeiro de 1550, Pablo de Torres (bispo do Panamá) escreveu uma carta ao Conselho das Índias espanhol, onde diz que a metade dos pilotos e marinheiros no Mar del Sur (todo o Pacífico Oriental) eram portugueses. Este documento, de enorme importância, atesta de forma retumbante a presença portuguesa na América espanhola do Pacífico. Do México ao Panamá e também no Peru e países vizinhos, eram de facto muitos os portugueses. No caso da circum-navegação de Drake temos mais pilotos portugueses capturados no Pacífico: João Pascoal, Custódio Rodrigues e Gaspar Martim. No caso da exploração inicial da Baixa Califórnia, sob Cortés, temos Martim da Costa, do Porto, que era o piloto de Grijalva. No caso da circum-navegação de Cavendish, Nicolas Rodrigo foi raptado possivelmente por ser um mercador que conhecia bem a China e o Japão. No caso de Cabrilho, temos Alvar Nunes (dono do segundo maior navio na frota) e António Correia (de Viana do Castelo, mestre na frota). Há ainda Gaspar Rico, o piloto-mor de Villalobos na expedição que batizou as Filipinas, e António Fernandes, muito provavelmente dono de outro navio na frota de Pedro de Alvarado (governador da Guatemala) construída por Cabrilho. Este Fernandes era provavelmente também carpinteiro naval, como alguns outros portugueses. Há ainda o caso fascinante de Lope Martim de Lagos e também Pedro F. de Queirós e a almirante Isabel Barreto, etc. Para conhecer muitos mais exemplos, recomendo vivamente a leitura da obra da professora Maria da Graça Ventura, a maior especialista acerca da presença portuguesa na América espanhola.Há um mapa que já identificou que traz uma Baía de Cabrilho, à portuguesa, não Cabrillo. Isso é importante, sabendo que muitos nomes portugueses são “castelhanizados”, como Soromenho que é escrito Cermeño à espanhola, não significando que sejam espanhóis. Soromenho/Cermeño, por exemplo, nasceu em Sesimbra.Sim, localizei a única cópia sobrevivente de um mapa de 1604 de enormíssima importância, cujas fontes são em grande parte espanholas. Feito pelo cartógrafo florentino Matteo Neroni, trata-se do documento mais antigo que se conhece com o nome Cabrilho escrito em português, reforçando o que escreveu Herrera um pouco mais tarde (c. 1615), acerca de Cabrilho ser português. Esta “B. de Cabrilho”, situada perto dos 40º N no mapa de Neroni, no contexto da vizinhança geográfica parece ser a atual Baía de Drake, de facto nos 38º N. O corsário inglês chamou Nova Albion a esta região devido à cor esbranquiçada desta baía, lembrando-lhe a costa sul de Inglaterra. Ora precisamente no mapa do cartógrafo português André Homem, de 1559, aparece uma “B. Blanca” nos 38º N. O mapa de 1559 foi dos primeiros a mostrar em detalhe os topónimos da Califórnia batizados pela frota de Cabrilho. Sabemos que os duques de Florença mantinham contacto próximo com a corte espanhola e faziam muitos pagamentos inclusivamente a Herrera. São, porém, várias as fontes de informação no fabuloso mapa de Neroni, incluindo muito provavelmente o misterioso Francisco Stroça Galý (piloto espanhol ou “italiano”?) e a sua viagem de Macau para Acapulco em 1584. De igual modo é inacreditável o quão pouco se sabe da viagem de João da Gama (Capitão-Mor de Macau e neto de Vasco da Gama) de Macau para Acapulco em 1589-1590, acabando preso pelos espanhóis, mas muito provavelmente avistando extensas partes das Aleutas, o que gerou o “mito” da Terra de Gama, ou Terra Esonis (pensando-se que se alongaria ao Japão). Ver, já no séc. XVIII, mapas europeus com toda a costa do Pacífico dos EUA ainda representada numa combinação de uma enorme Terra Esonis continental com (essencialmente…) as descobertas de Cabrilho (a sul dos 42º N)… enfim, é um tremendo atestado à incompetência marítima espanhola. Mais de 200 anos depois de Cabrilho, em 1769, a Espanha colonizava finalmente S. Diego. Quanto a Sebastião Rodrigues Soromenho, exato, nasceu em Sesimbra (onde várias pessoas com árvores genealógicas antigas têm antepassados Soromenho), mesmo que os espanhóis lhe chamem Cermeño. O testamento dele diz ainda que era natural de Lagos (não nascido - como insistiria erroneamente Kramer…), onde viveu e casou. Quando o vice-rei da Nova Espanha, Luís de Velasco, o contratou, em 1594, para explorar e cartografar a costa da Califórnia, escreveu: “…Cermeño, e é homem prático na carreira e seguro… apesar de ser português pois não há castelhanos deste ofício, que façam o descobrimento e demarcação…” .Um livro recém-publicado pela embaixada mexicana em Lisboa põe historiadores mexicanos a afirmar que Cabrilho é português. Isso significa que a tese da portugalidade de Cabrilho continua a mais forte, independentemente do debate histórico ser natural?É verdade - foi uma surpresa agradável, uma iniciativa que desconhecia. A publicação do livro Um mar partilhado - diálogo entre México e Portugal aborda diversas áreas de colaboração entre os nossos países e também quando os destinos históricos de portugueses e mexicanos se cruzaram no passado. É aí que entra Cabrilho, e na opinião de um historiador e do vice-reitor da Universidad CETYS (Baixa Califórnia, México), considerando todas as publicações existentes, concluíram objetiva e independentemente sobre a nacionalidade portuguesa de Cabrilho (o que muito me apraz), como se pode ler no livro. É de louvar tal colaboração entre a CETYS e as universidades de Coimbra e do Porto, sob a batuta dinamizadora de Bruno Figueroa, o embaixador do México em Portugal. Sim, a troca de dados e discussão de interpretações é desejável em qualquer área científica, mas é preciso que os outros interlocutores o queiram fazer. Há uma ou outra exceção, mas recusando-se a considerar todos os dados históricos existentes e interpretações de muitos outros historiadores que contrariam a narrativa enviesada do Cabrilho espanhol, torna o debate impossível. Convidámos Wendy Kramer para a nossa conferência de 2024, tentámos debater com ela várias vezes - sempre sem resultado. Está no seu direito. As publicações académicas profissionais servem para isso mesmo - apresentar dados que robusteçam teses. Para além da insistência na ideia errada - e inútil segundo Gandía - de que ser natural significa necessariamente ser nascido, não existe absolutamente mais nenhum documento em favor do Cabrilho espanhol. Do lado português, resumidamente, temos a B. de Cabrilho no mapa de 1604, a declaração de Herrera, o Juan Rodriguez Portugués na Nicarágua e Honduras como “irmão gémeo sombra” de Cabrilho (sempre nos mesmos locais e ao mesmo tempo, nos mesmos destacados eventos e conhecendo e fazendo negócios com as mesmas pessoas que Cabrilho), o Monte Cabrilho no Gerês e a datação por Carbono-14 do crucifixo oferecido por Cabrilho à sua família Rodrigues em Lapela de Cabril. Uma goleada de 5-1, sendo que me parece muito dúbio o “golo” espanhol. Como dizia o prof. João Paulo Oliveira e Costa, brilhante historiador da Universidade Nova de Lisboa e orador na conferência de 2024 aqui na Califórnia, “Então, mas é só isso a prova espanhola, não têm mais nada a apresentar?”Continua a investigar. Há algum novo dado que venha reforçar Cabrilho em vez de Cabrillo, Trás-os-Montes em vez da Andaluzia?Há referência nos arquivos da Guatemala a um comerciante português no porto de Iztapa, o estaleiro naval onde Cabrilho construiu vários navios. Quem era esse português? Nos arquivos de Sevilha procuro testemunhos adicionais (que sei que existiram) do genovês Bartolome Ferrer (o piloto-mor de Cabrilho) e de Andrés Urdaneta (navegador basco) que conheceram bem Cabrilho. Nos arquivos regionais mexicanos, procuro localizar mais dados sobre o testamento de Cabrilho, cuja existência terei provado. Grandes palheiros, talvez com mais agulhas. Em termos de novos dados de grande importância, Luís Gonçales (nome português) era o contramestre de João da Gama, na viagem referida acima. Ora um homónimo Luís Gonçales era muito provavelmente o dono e piloto do S. Miguel, o navio mais pequeno da frota de Cabrilho. É isso que diz o documento original, Gonçales e não Gonzalez, como mostram transcrições paleográficas espanholas desmazeladas. Existe agora, portanto, a hipótese abracadabrante de todos os três navios da frota de Cabrilho serem propriedade de portugueses! Isto não é, porém, categórico, uma vez que Gonçales era também um sobrenome castelhano no séc. XVI, antes de evoluir para o actual Gonzalez. Outra descoberta surpreendente está nos censos populacionais de 1920 de Rhode Island, na costa Leste dos EUA, onde aparecem António Cabrilho, Joaquina Cabrilho e Américo Cabrilho. Estes emigrantes portugueses voltaram à sua terra natal mais tarde, no Lugar de Azevedo, perto do Monte Cabrilho. O sobrenome verdadeiro da família era Pereira, mas por razões pessoais adotaram o nome Cabrilho enquanto nos EUA. Terá Cabrilho feito o mesmo, por ter vindo da região do Monte Cabrilho? Além disso este exemplo mostra que a tradição oral acerca de Cabrilho era conhecida no Gerês por pessoas comuns, antes e independentemente de qualquer suposto aproveitamento posterior do Estado Novo acerca da figura do Cabrilho português. Por fim, nos arquivos portugueses a referência mais antiga (c. 1799-1804) que encontrei aos feitos do navegador é do frei António da Visitação Freire de Carvalho, professor de Geografia e história no Convento de S. Vicente de Fora, que lhe chamou Rodrigo Cabrilho.Qual foi o impacto da conferência internacional dedicada a Cabrilho na Universidade de San Diego, em 2024?Há mais de 30 anos que não se organizava uma conferência sobre estes temas. Foi bom reunirmos alguns dos melhores historiadores a nível mundial para trocar ideias e conhecimento. Estamos agora a ultimar a versão inglesa das atas da conferência, em colaboração com o Centro de História de S.Diego. A capa dessas atas terá o mapa de 1604, o que será um marco importante a nível académico. Foi decisivo termos o apoio explícito do Ministério da Defesa Nacional e do Gabinete do Chefe de Estado Maior da Armada (então o Almirante Gouveia e Melo que, julgo saber, tem muito interesse por História) para estas publicações (a versão portuguesa sairá em 2026). Na sequência da iniciativa México-Portugal referida acima, desenvolvemos contactos anteriores com Ensenada e a CETYS e planeamos agora uma conferência conjunta, com organização luso-mexicana, para 2026 em Ensenada, onde existe outra estátua de Cabrilho, oferta de Portugal. Acrescente-se que o mapa de 1604 revela outra novidade única acerca de Ensenada, que aparece como B. Larga. A frota de Cabrilho chegou a Ensenada a 17 de setembro de 1542, mas o dia de São Mateus (como Ensenada foi então batizada nos mapas coevos) é apenas a 21 de setembro. A frota partiu a 23 de setembro, sendo possível que ao verem uma tal baía tão larga lhe dessem esse nome logo no dia 17. Note-se que a palavra castelhana para larga é ancha, e para longa é larga, como em espada longa (ou espada larga em castelhano). Ou seja, B. Larga pode ter resultado de batismo português igualmente, como esperamos vir a discutir em 2026 em Ensenada.A comunidade portuguesa na Califórnia, sobretudo a de San Diego, continua a celebrar o navegador que em 1542 fez história?Sim, o empenho continua lá e as atividades das organizações locais em San Diego prosseguem com alguma regularidade. Já a direção do Museu Português de San José quer instalar uma exibição sobre os navegadores portugueses no Pacífico. Era bom que se concretizasse. Em San Diego, infelizmente o Festival Cabrilho está suspenso desde a pandemia covid-19. Depois desta tem sido impossível uma organização conjunta do Festival Cabrilho, dado não existir nenhuma colaboração com a comunidade espanhola em San Diego, que mantém uma hostilidade permanente e lamentável. Alguns hispanófilos insistem na fantasia do Cabrilho nascido em Espanha. A existência da B. de Cabrilho no mapa 1604 mostra categoricamente que o nome Cabrilho, com lh, não foi inventado por uma cabala conjunta do Estado Novo e da comunidade portuguesa de San Diego, como eles promovem sistemática e caluniosamente. Isto só lhes fica mal e traz muitos atritos, incluindo múltiplas tentativas de remoção da estátua portuguesa de Cabrilho e das placas comemorativas da Marinha Portuguesa, do Monumento Nacional a Cabrilho em San Diego. Com Ensenada o diálogo é mais construtivo. A alcaide Cláudia Agatón planeia a produção de um filme (Netflix) sobre Cabrilho, baseado em Ensenada. Quer o nosso incansável corpo diplomático (de São Francisco a San Diego e Washington DC), quer a comunidade portuguesa de San Diego, estão empenhados em otimizar a colaboração portuguesa com os amigos mexicanos. Aguardamos com grande expectativa a tomada de posse do novo embaixador de Portugal no México.."Tudo aponta para que Cabrilho seja português apesar destas novas teorias que vão aparecendo"