Vítor Higgs / DN
Aos 22 anos, só tinha instrução primária. Hoje, quase sete décadas volvidas, é um dos maiores e mais aclamados pensadores portugueses, catedrático convidado aposentado em Motricidade Humana, disciplina em que foi indiscutível pioneiro, pai mesmo, ou hoje talvez avô, tantas foram já as gerações formadas à luz desta scienza nuova, que recusa ser confundida quer com a velha ginástica das camisolas d’alças e das sapatilhas brancas, quer com a sua sucessora, a educação física dos fatos de treino e dos stôres de apito ao peito.
Na sua dissertação de doutoramento, discutida a uma sexta-feira, 6 de Junho de 1986, foi paladino da CMH, acrónimo de Ciência da Motricidade Humana, que qualifica como um “híbrido cultural”, feito de ciência, tecnologia, arte, filosofia e senso comum. Para fundamentar tal postura, afirmou-se, a saber, como “antidualista, antipositivista, pós-moderno, dado que se integra numa transição paradigmática e num conhecimento-emancipação (Boaventura Sousa Santos) e, portanto, anticolonialista e anti-imperialista”. A motricidade, por sua vez, define-a como “a energia para o movimento intencional da transcendência, ou superação.”
É raro encontrar uma entrada da Wikipédia com palavras tão caras e conceitos tão complexos, densíssimos, coisa que não admira num homem que proclamou um dia que “a Motricidade Humana explica o absoluto do sentido e o sentido do absoluto no movimento intencional” e que gostava de esmagar os pacatos leitores d’A Bola apresentando-se como alguém que “há mais de quarenta anos encetou uma análise epistemológica do desporto que o levou, desenhando ainda tremulamente as palavras, pela consciência dos seus limites, ao seio das ciências hermenêutica-humanas.”
Não foi decerto ao acaso que, no final de uma das suas aulas, o aluno José Mourinho acercou-se dele para dizer, rendido, “O Sr. deu-me a volta à cabeça”. Tal como não foi por acaso que, num escrito em sua homenagem, António de Almeida Santos confessou, com desarmante candura, que “os seus textos, incluindo os pedagógicos, não são de fácil apreensão para o leitor comum” (“O meu amigo Manuel Sérgio”, in Motrisofia - Homenagem a Manuel Sérgio, Instituto Piaget, 2007, pp. 73-79).
A sua bibliografia, vasta e candente, espraia-se por dezenas de volumes, entre a filosofia (do desporto) e a poesia, ainda que uma e outra por vezes se confundam, numa salutar e louvável transumância de saberes. Poesia / minha bilha de água fresca / Com água para todos os desertos / Meu sumo concentrado de ternura / E de beijos / E de braços abertos / E de frutos maduros - assim homenageia Manuel Sérgio a sua arte lírica, começada com Chuva, de 1961, a qual, uma vez passada, deu lugar a Entre o Nevoeiro da Serra, de 1963, livrito que explora muito bem o filão telúrico de marca Aquilino-Torga. A este último, aliás, dedicou Sérgio alguns poemas, como “Aguarela Transmontana”, cuja primeira quadra reza que Os montes são ondas / A beijar-me os pés / Ondas redondas / Que o mar mundo fez e, na mesma senda, “A Miguel Torga”: Eh! Meu irmão transmontano / Fragoroso penedo / Que de tanto rolar / E se quebrar / Abriu em gumes de meterem medo. O autor de Contos da Montanha, a quem Sérgio enviou Chuva, agradeceu-lhe o gesto numa carta curta e simpática em que dizia, e cita-se, “poucas vezes, nos últimos anos, me senti molhado por tão promissora chuva poética.”
Manuel Sérgio, que é sócio da Associação Portuguesa de Escritores, tem dedicado vários poemas a muitos dos seus colegas no difícil ofício da escrita, como Camões, Torga, Ferreira de Castro, Teilhard de Chardin, Rabindranath Tagore, García Lorca, Pessoa, Saramago, Vergílio Ferreira, Manuel Alegre, José Tolentino de Mendonça, Miguel Real, Carlos Paredes, Abel Figueiredo (este brindado com os versos “Motricidade Humana”) ou Gonçalo M. Tavares (seu discípulo, assistente e orientando doutoral, merecedor de A inspiração é a seiva que te sustenta / Nos teus olhos molhados de alvorada / é bem visível o que te alimenta / flor que precede o fruto inconformada).
A sua obra literária cobre um arco temporal dilatado, que vai de Chuva, de 1961, já citado, até Terra de Vera Cruz, de 2007, passando por Uma Ligeira Brisa do Tempo, de 1972, Alguns Poemas de Natal… e Outros, de 1996, e Tanta Coisa Verdadeira, de 2004. O melhor da sua produção literária foi reunido há pouco em Antologia Poética, de 2017, com prefácio de José Eduardo Franco, para quem “ler a poesia de Manuel Sérgio é banhar-se em águas cristalinas e riachos suaves, como que realizando um movimento de regresso à infância e à inocência perdida” e para quem, também, “a poesia de Manuel Sérgio tem uma graça e uma força de palingenesia, de renovação, que vale a pena saborear.” É isso, na verdade, o que avulta logo na primeira estrofe de “Brinquedo”, poema de 1961, incluído em Chuva:
Cavalinho de corda a galopar,
Entre a branca alegria do meu filho
Tu és na nossa casa de jantar
Saudades desdobradas num
só trilho.
Entre a branca alegria do meu filho
Tu és na nossa casa de jantar
Saudades desdobradas num
só trilho.
Além da poesia, Sérgio é autor de uma impressionante obra científica e filosófica, que cobre títulos tão distintos como Ciência da Motricidade Humana - Uma Investigação Epistemológica, de 1985, Motricidade Humana - Uma Nova Ciência do Homem!, de 1986, Para uma Epistemologia da Motricidade Humana - Prolegómenos a uma Ciência do Homem, de 1988, Motricidade Humana - Uma Nova Ciência do Homem, de 1989, Motricidade Humana - Contribuições para um Paradigma Emergente, de 1994, Epistemologia da Motricidade Humana, de 1996, Um Corte Epistemológico - da Educação Física à Motricidade Humana, de 1999, Para um Novo Paradigma do Saber… e do Ser, de 2005, ou Crítica da Razão Desportiva, de 2012. De permeio, um título algo voyeur, Alguns Olhares sobre o Corpo, de 2004, Filosofia do Futebol, de 2009, e, mais recentemente, em modo Tonecas, As Lições do Professor Manuel Sérgio, dadas em 2013, ou O Futebol e Eu, jogado em 2015, bem como, já em 2021, a 6ª. edição de Algumas Teses sobre o Desporto (“um livro surpreendente” e “um livro necessário”, escreve Francisco Louçã no prefácio). Está em curso, de resto, a publicação da sua Obra Selecta, da qual veio já a lume o primeiro volume (Afrontamento, 2023), num empreendimento levado a cabo por investigadores de várias universidades portuguesas e que cobrirá quatro tomos, num total de mais de mil páginas, como anuncia no respectivo prefácio a ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, para quem Manuel Sérgio introduziu um “corte epistemológico” na Educação Física e, ao fazê-lo, “criou um outro paradigma científico.”
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Vejamos então o colosso: Manuel Sérgio Vieira e Cunha viu a luz a uma quarta-feira, dia 20 de Abril de 1933, fazendo-o em Lisboa (Lisboa / Minha aldeia pequenina / Cidade do meu tamanho, Onde nasci) e, mais precisamente, na freguesia da Ajuda (Na freguesia da Ajuda / onde eu menino adormecia a sorrir / Meu convés deslumbramento / Descante de um reino oculto). Aí passaria a infância e a adolescência, crescendo nas imediações do Campo das Salésias, d’Os Belenenses, clube do seu coração, do qual foi eleito sócio de mérito, em 1984 e por proposta de Acácio Rosa, além de ter sido presidente da sua assembleia-geral e, a convite do coronel Marcelino Marques, homem do MFA, vice-presidente da direcção, em 1975-1977 (foi também presidente da assembleia-geral da Associação de Basquetebol de Lisboa e presidente do conselho fiscal da Associação de Andebol de Lisboa). No auge da revolução, dirá: “não tenho dúvidas de que o Belenenses está em consonância com a revolução e considera que, acima de tudo, é ao serviço de um Portugal socialista (e não social-democrata) que pensa e organiza todas as suas actividades. Não, a contra-revolução não entrará no nosso país através do Belenenses.”
A família era pobre, de origens transmontanas, sendo o pai praça da GNR e a mãe doméstica, além de analfabeta e muito católica (“em minha casa não havia livros”), razão pela qual sonhou que o filho seguisse a via do sacerdócio, o que o levou a ser seminarista durante três anos, até se aperceber de que não tinha vocação para padre nem “jeito para o ambiente concentracionário do seminário”. Começou a trabalhar muito novo, com 19 anos, nos armazéns do Arsenal do Alfeite, onde esteve de 1952 a 1965, em convívio próximo com o operariado (“o contacto com os operários fez-me muito bem”, “cheguei a não ter dinheiro para comer, ao almoço comia um bocadinho de pão com uns torresmos, bebia um copinho de dois”).
Aos 22 anos, tomou aquelas que foram, muito provavelmente, as duas opções fundamentais da sua vida: casou e decidiu voltar a estudar, o que fez enquanto trabalhava no Alfeite. Na Faculdade de Letras, que frequentou com o estatuto de trabalhador-estudante, foi colega ou contemporâneo de Medeiros Ferreira, Sottomayor Cardia, Maria Filomena Mónica ou Eduardo Prado Coelho e, ao que consta, reunia às noites numa tertúlia estudantil existente na Pastelaria Roma, tão saudosa. Concluída a licenciatura (em Filosofia), foi, entre 1965 e 1968, professor de Português e de História na Escola Comercial e Industrial Emídio Navarro e de Filosofia no Colégio Padre António Vieira, ambos em Almada, localidade a que ficará sentimentalmente ligado para sempre e onde, anos volvidos, será docente do Instituto Piaget, fundado e presidido por António Oliveira Cruz (“A história trágico-telúrica de Oliveira Cruz, filho, neto, bisneto e tetraneto de obscuros cavadores e campónios, criado a ouvir as suas crónicas, ensopadas de suor e poesia, Sísifo ao natural, só podia acabar, para ele, homem culto, na poesia, como forma de renovar a esperança, como forma de purificar o desejo”, escreverá Manuel Sérgio em António Oliveira Cruz - O poeta do desejo, 2008).
Em 1968, o director-geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, dr. Armando Rocha, nomeou-o responsável pelo Centro de Documentação e Informação do Fundo de Fomento do Desporto, que integrava a biblioteca do Instituto Nacional de Educação Física (INEF), funções que acumulou com a docência na Escola de Educação Física de Lisboa, que diplomava os professores dessa disciplina.
Politicamente, já era então da oposição, mas, como hoje diz, não podia sê-lo em excesso, nem correr demasiados riscos, pois tinha mulher em casa e três filhos para criar (“tão cauteloso fui que não cheguei a incomodar a polícia política”). Numa greve académica, chegou a ser preso e, como era funcionário do Estado, ficou apavorado com a hipótese de ser demitido, mas, felizmente, “não aconteceu nada.” Em resultado disso, limitou-se a colaborar esparsamente no suplemento desportivo do República, a convite de Raúl Rêgo. Um dia, afirmou a Armando Rocha que o regime estava por um fio. Rocha ouviu-o calado e imóvel, e concordou baixinho, acrescentando: “Mas não diga isso a muita gente.”
Em 1975, no calor do PREC, uma delegação de alunos do INEF (a que chamavam “Instituto Nacional de Estudantes Falhados”) foi a sua casa para o convidar para professor desse Instituto, onde começou por leccionar Introdução à Política. Mais tarde, daria aulas de Introdução à Actividade Física, Filosofia das Actividades Corporais e, já na Faculdade de Motricidade Humana, Epistemologia da Motricidade Humana (foi também catedrático da Universidade Fernando Pessoa, em Ponte de Lima, e do Instituto Superior da Maia, na Maia). Por essa altura, integrou a célula de escritores do PCP, ao lado, entre outros, de José Saramago, a quem dedicará um dos seus mais retumbantes poemas: A ti escritor genial / Herói do agro / De raiz gramatical / Este poema eu consagro.
Começou então a participar em congressos e encontros no estrangeiro e a dar palestras em jornadas, colóquios e seminários de vária ordem, enquanto dava à estampa algumas obras de pendor mais político, em sintonia com o espírito do tempo, como Para uma renovação do desporto nacional de 1975, e Desporto em Democracia, de 1976, com prefácio de Batista-Bastos, que, no seu estilo muito próprio, definiu Sérgio como um “companheiro do mesmo barco, sob a mesma bandeira, escritor que enjeita as causas ocasionais porque o seu projecto está vinculado ao futuro.” No interior do livro, o autor não desmereceu, afirmando, entre o mais, que “o marxismo-leninismo se me afigura gritantemente como a formulação básica, inicial de qualquer desporto democrático e democratizador. Porque frontalmente anti-burguês e, como tal, anti-conservador, anti-classista, anti-capitalista; porque declaradamente a favor dos trabalhadores - só o marxismo denuncia e anuncia: denuncia a opressão, o inimigo imediato e concreto da justiça social; anuncia o mundo novo, o projecto histórico necessário à humanização de todos os homens.”
Defendia-se, de igual sorte, a ditadura do proletariado, na qual, segundo Sérgio, “há tanta ou mais liberdade para o povo como na ditadura burguesa (vulgo democracias ocidentais) dela usufrui a burguesia.” Motivos mais do que suficientes para Mário Castrim escrever, em 5/9/1977, nas páginas do Diário de Lisboa, que Manuel Sérgio se encontrava “na pista do futuro.” Por essa altura - mais precisamente, em 1980 - deu à estampa Heróis Olímpicos do Nosso Tempo, em cujo prefácio Urbano Tavares Rodrigues se insurgia contra o boicote às Olimpíadas de Moscovo, ditado pelas “forças da treva - os inimigos da paz, os produtores de material de guerra e os que da sua venda fazem negócios ultra-rendosos.” Alinhando pelo mesmo diapasão, Sérgio atacará, nesse escrito, a “cruzada medieval” do Presidente Jimmy Carter e as “grandes centrais de manipulação da opinião pública”, considerando o boicote ocidental aos Jogos, motivado pela invasão soviética do Afeganistão, uma “recusa insolente de um instrumento irrecusável da dignidade e da fraternidade humanas.”
Em 1980, e atendendo ao seu “currículo científico brilhante”, um júri de catedráticos da Técnica equiparou-o a professor auxiliar convidado, e, em 1986, a instâncias de Melo Barreiros, prestou provas de doutoramento, nas quais foi aprovado por unanimidade, mas sem louvor, facto que atribui ao “caciquismo, privado de sentido histórico” dominante na universidade portuguesa, a qual “só sabe defender os seus privilégios e que vai protelando, aqui e além, qualquer acto criador.” Quanto à escolha da sua área de especialização, Sérgio já garantiu que “não foi por questões profissionais, pelo rodopiar ladino do mais despudorado oportunismo, por contextos institucionais favoráveis que me deitei ao repensar epistemológico da Educação Física”. Graças a ele, e como observou Homero Serpa, “a motricidade humana não nasceu contra alguém no coiquinho do aviário, apareceu como ciência fundamentada.”
Devido ao estímulo do então ministro da Educação, João de Deus Pinheiro, em 1987 foi leccionar para o Brasil, mais precisamente para a Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, onde, diz, “já era conhecido o meu pensamento”. Entregou-se então aos grandes prosadores brasileiros, lendo-os ao som da bossa, e, em resultado disso, confessa ter sentido “o verde e amarelo do meu coração a nascer” (ao mesmo tempo que revela “eu ressoava Merleau-Ponty”).
Regressado a Portugal em finais de 1988, continuou a porfiar pela criação de um Centro de Lógica, Epistemologia e História das Ciências no Instituto Superior de Educação Física. No ano seguinte, enquanto veraneava ao trópico, foi informado de que, por despacho do ministro Roberto Carneiro, aquele Instituto fora convertido em Faculdade de Motricidade Humana. Logo acorreu a escrever ao pai da proeza, o doutor Melo Barreiros, dizendo-lhe, em carta prenhe de júbilo, e num registo muito típico, “passámos a integrar o corpo-objecto no corpo-sujeito, o anátomo-fisiológico na conduta motora, o neuronal no vivido, a natureza na cultura”.
Não muito depois, em 1990, foi um dos fundadores e o primeiro presidente do Partido da Solidariedade Nacional, o PSN, pelo qual concorreu às legislativas do ano seguinte. Na campanha, prognosticou que o “partido dos reformados” iria eleger 20 deputados. Acabou sendo eleito só ele, pelo círculo de Lisboa, com 1,68% e 96.096 votos, esmagando o concorrente seguinte, o PSR de Louçã, com 64.159 votos. Esteve no parlamento de 1991 a 1995, fazendo aí bons amigos, como Barbosa de Melo, mas teve uma intervenção discreta, de escasso ou nenhum relevo, a ponto de até os admiradores o considerarem “um diletante na política partidária” (cf. João Relvão Caetano, “A Política na Vida e Obra de Manuel Sérgio”, in Pensar à Frente: Estudos sobre Manuel Sérgio - Corporeidade, Desporto, Ética, Cultura e Cidadania, 2021, p. 205) Em contraste, Almeida Santos entendeu que Sérgio “deixou em S. Bento uma imagem paradigmática” e, mais recentemente, José Eduardo Franco e Susana Alves de Jesus sustentaram que, na sua passagem pela política, Sérgio instaurou o que “podemos chamar política-cultura, sob o primado do homem como ser cultural.” Visionário, pugnou pela criação de um Provedor do Animal, proposta que então não vingou - anos mais tarde, acabaria, ele próprio, por ser nomeado Provedor da Ética do Desporto.
Na altura, protagonizou um episódio algo caricato, mas quiçá revelador: em 1991, no rescaldo da maioria absoluta do PSD, o jornal Tal & Qual pôs o imitador Canto e Castro a fazer de Cavaco Silva, ligando para várias pessoas a convidá-las para o governo. Uma das vítimas foi Manuel Sérgio, que de imediato se dispôs a ser ministro e protestou subida honra pelo convite feito (e pela pessoa do primeiro-ministro). Recém-eleito, disse “ainda me sinto caloiro, mas desejoso de aprender” e justificou a escolha da filha mais nova para sua assessora com o argumento de que “é uma pessoa que tem a sagacidade, o quantum satis de sagacidade para o lugar e, sendo minha filha, dá-me confiança, logicamente” (RTP, 16/10/1996), o que corrobora a ideia, expendida anos mais tarde por Gustavo Pires, de que “Manuel Sérgio sustentou o seu sucesso profissional no sucesso da sua própria família, onde se destaca o sucesso dos próprios filhos.”
No partido, entretanto, começaram as desinteligências, com Sérgio a querer, em vão, levar mais jovens para o PSN. No congresso extraordinário de 1992, uma moção de apoio a Manuel Sérgio foi aprovada por maioria, mas, como os seus defensores se ergueram de pé para o aplaudir, o presidente do congresso deu a moção aprovada por aclamação, com os adversários aos gritos e apupos. No mesmo meeting, um dos vice-presidentes, Themudo Martins, acusou o outro, Nelson Mendes, de querer pôr o partido ao serviço da Igreja da Unificação, a seita do reverendo Moon. Nas autárquicas de 1993, o partido ainda teve um bom resultado, mas, nas europeias do ano seguinte, ficou em décimo, péssimo, pese o seu fulgurante candidato, o major na reserva Antunes de Sousa, que em campanha prometeu dar 20% do salário de eurodeputado para um fundo de apoio aos reformados; que, em Cacilhas perguntou a um vendedor de tomates como iam os dele; e que, pelo país fora, em minicomícios e sessões de esclarecimento, adoptou uma inflamada postura anti-Maastricht, berrando coisas tais como “no Parlamento Europeu, quero agarrar o touro pelos cornos, não quero ser rabejador!!”, “os milhões da Europa servem para alimentar uns certos pançudos!”, “os grandes partidos julgam que só eles têm a pele branca, e nós somos todos negros, de segunda, de segunda leva, nós constituímos a quarta leva do tomate!”, “nós não podemos permitir que seja por decreto, proveniente de Bruxelas, que se estabeleça o saber e o gosto do cozido à portuguesa!”.
A derrocada do PSN deu-se nas legislativas de 1995, com Sérgio já distante do partido, que ficou em oitavo lugar e fora do parlamento. Contudo, logo em 1992 - ou seja, ainda no tempo da sua presidência -, o PSN fora tomado de assalto por gente de vária ordem (naturistas, nacionalistas, moonies), com Sérgio a distanciar-se das facções em disputa e a garantir, em entrevista a Paula Magalhães, do Telejornal, que o PSN iria ser um “partido pós-moderno” (cf. Público, de 3/9/2012; RTP, 16/2/1992).
Anos volvidos, em 2001, o PSN voltaria a surpreender e a fazer História, desta feita por ter conseguido a proeza de ser o partido menos votado em décadas de democracia, já que, no sufrágio desse ano, obteve a módica quantia de sete votos - repete-se: sete votos -, assim distribuídos: dois em Valpaços, dois em Chaves, dois em Peso da Régua e um, solitário e onanista, em Vila Pouca de Aguiar. Soube-se, pouco depois, que, afinal, nem esses votos contaram, já que o candidato Josué Pedro apresentou a lista a tempo e horas, mas o presidente-proprietário do PSN, Barbosa da Costa, no último instante solicitou ao tribunal a desistência do partido, porque “certas coisas não estavam muito em conformidade”. Josué ficou danado, pois candidatara-se “para defender essa riqueza do mundo que é o vinho do Porto”, jurando que iria ser “um segundo marquês de Pombal”, pelo que a anulação da lista lhe pareceu “capricho, vaidade ou estupidez”. Barbosa da Costa, de seu lado, pese reconhecer que o PSN até tinha “um programa jeitosinho”, sentiu o partido “um pouco desmotivado” e, em consonância, apelou aos oito mil militantes para votarem em massa no PSD (lamentando mais tarde que “o PSD nunca tenha vindo a público agradecer essa dádiva”). Josué, porém, não era um qualquer, já tinha sido candidato a Belém, e, em entrevista a O Templário, afirmara, sem falsas modéstias, que “se ler o meu curriculum vitae, não considero que nenhum governante, depois de Marcelo Caetano, tenha feito o que eu já fiz”, isto apesar de residir há 25 anos na Bélgica, onde se dedicava ao comércio de “bebidas e outras coisas”. Em número dois da lista, colocara uma professora primária, viúva, que tinha uma relação próxima com ele, divorciado, sendo isso, porventura, o que motivou a intervenção do presidente Barbosa, dono das empresas Fográfica e Imprexbrindes, ambas sitas no Porto, que fora eleito em congresso “num hotel de Lisboa”, depois reeleito por aclamação “num hotel de Aveiro” e que, em 2001, pensava voltar a reunir as suas hostes “num hotel de Lisboa”, isto apesar de o PSN ter, entretanto, mudado a sua sede para Porto de Mós (cf. Público, de 19/1/2002). Por não ter apresentado contas em três anos consecutivos - 2000, 2001 e 2002 -, o partido acabou extinto oficiosamente, a instâncias do Ministério Público. A sua mensagem, porém, parece continuar viva e, em 2015, foi constituído o PURP - Partido Unido dos Reformados e Pensionistas.
Quanto ao fundador, Manuel Sérgio considera hoje que “Salazar não era trouxa com uma ideologia reacionária, mas pessoa com certa formação” e que foi um “ditador especial, diferente de Hitler, Mussolini ou mesmo Franco, que mataram muito mais gente do que ele”; ainda assim, afirma que “não posso passar a vida a dizer que Salazar era bom” e continua a entender que “Marx faz uma crítica ao capitalismo como ninguém fez”. Em Textos Insólitos, de 2008, deu a lume um ensaio sobre o “socialismo para o século XXI”, assente em três eixos: “democracia participativa”, “economia de necessidades” e “cultura solidária”.
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“É um profeta!”, bradou sobre ele José Maria Pedroto, podendo dizer-se que Manuel Sérgio tem desmentido o dito de Cristo (Mc 6:4, Lc 4:24) pois não lhe têm faltado homenagens na sua terra, sendo hoje um dos mais aclamados intelectuais do país, o que talvez diga alguma coisa sobre a força do nosso desporto, ou a fraqueza da lusa academia. Na competição pelo maior ditirambo, conclui-se que “falar de Manuel Sérgio não é fácil” (Gustavo Pires), embora já lhe tenham chamado, “navegador de pensamentos”, comparando-o aos “navegadores portugueses do século XV que navegavam os mares” (Vítor Serpa, director de A Bola), “contemporâneo do futuro” (Gustavo Pires), “arauto da cidadania” (José Eduardo Franco), “mestre, pedagogo, cidadão” (Guilherme d’Oliveira Martins), “homem grande entre os grandes da nossa cultura” (Oliveira Cruz) ou “o filósofo mais importante que o desporto hodierno produziu” (Abel Figueiredo). Dele disseram que “a sua utopia transformou o herdado em futuro. Numa palavra, iluminou” (Laurentino Dias, secretário de Estado da Juventude e Desporto), que “Manuel Sérgio é um animal social, como qualquer um de nós” (Luísa Frazão), que “em Manuel Sérgio a transcendência é o sentido da vida, pois viver é uma tentativa incessante de superação” (José Carlos Lima), que “Manuel Sérgio já está na história portuguesa como o homem que nos proporcionou e ensinou um novo olhar sobre o homem” (Luís Lourenço), que é um “pensador neo-olimpista”, que introdutor de uma “revolução epistemológica” (Miguel Real). Falam da “Obra sergiana”, com maiúscula, classificam-no como uma “figura poliédrica”, fazem-lhe antologias da obra poética e selectas da científica.
Segundo José Eduardo Franco e Miguel Real, “Manuel Sérgio estabeleceu uma paideia para o desporto nacional” e, do mesmo passo, “recuperou e encarnou, nos séculos XX e XXI, o modelo clássico do sábio integral, reafirmado no Renascimento e perdido na deriva especializante do cientismo racionalista.” Por seu turno, a Enciclopédia Verbo, onde colaborou, classifica-o de “claro inovador em Portugal de uma antropocinesiologia”, mas o facto é que o seu labor se estendeu à quinantropologia, à ainantropologia, à cinefantasia, à psicocinética, à ludomotricidade e também, claro, à ergomotricidade. Depois de se avistar com ele, o jornalista Juca Kfouri escreveu na Folha de São Paulo, de 24/9/2006: “Conheci um marciano. E descobri que os marcianos falam português (…) Sim, o marciano em causa é um português. Dos bons. Um filósofo português.”
Na mesma linha, Fernando Paulo Baptista chamou-lhe “uma espécie de Sócrates andarilho, maduro e inquieto, atento, irónico e maiêutico, a espalhar desassossegos vários e a rasgar esperançosas e múltiplas clareiras na ágora do pensamento.” E, a partir de Palmela, Antunes de Sousa, seu discípulo dilecto (e, recordemos, cabeça de lista do PSN nas europeias de 1994), anotou que Manuel Sérgio trouxe consigo “uma verdadeira constelação anunciativa do humano”, para depois se referir ao “sopro de novos ventos que, em boa hora e em clima de ilusória acalmia, Manuel Sérgio, qual Éolo, soltou a partir das suas inquietantes aulas de Epistemologia.” Não contente, Antunes de Sousa chegou mesmo a afiançar, em transe místico, que, na obra de Manuel Sérgio, há “um halo de anúncio, de interpelação e de profecia que, de súbito, a todos nos convoca a uma integração consciencial e vivencial do irrecusável desígnio humano.” Ademais, “tudo isto sem a afectação da ideologia ou do dogma - tudo com a simplicidade heraclitiana de quem brinca e se entretém a criar.” Daí que haja “uma ontologia do sopro inspiracional que nele se decidiu e, por intermédio de cuja comunhão cósmica nele, decididamente, nos revemos todos.” Em síntese, e em suma, diremos, com Maria Ermelinda Jacques, que “toda a obra de Manuel Sérgio é desfatalizadora, porque traz consigo o anseio de novidade histórica, traz consigo a força de desmontar certezas e limites havidos como intocáveis.”
Não faltam também os livros de homenagem ou reflexão em torno do seu legado científico - ou, melhor, epistemológico -, alvo de colóquios, seminários e dissertações académicas. Entre o abundante corpus congratulatório, destaque para Ciência da Motricidade Humana - A definição de Manuel Sérgio ante a de ciência em Mário Bunje, da autoria de Ubirajara Oro, 1993, mas também para A Motricidade Humana em Manuel Sérgio, tese de Eduarda Maria Pereira de Sousa, orientada pelo próprio do Manuel Sérgio, Covilhã, 2006, para A Educação Física em Portugal - Contributo da obra pedagógica de Manuel Sérgio no âmbito do ensino da Educação Física no ensino básico, secundário e superior, de Fernanda Gonçalves, mestrado em Trás-os-Montes, 2010, para Motrisofia - Homenagem a Manuel Sérgio, Instituto Piaget, 2007, e, naturalmente, para Pensar à Frente - Corporeidade, Desporto, Ética, Cultura e Cidadania - Estudos sobre Manuel Sérgio, o qual, sob coordenação de José Eduardo Franco, foi dado à estampa em 2021 pelo Instituto Português do Desporto.
Em 2016, a Escola Básica n.º 118, ao Alto da Ajuda, passou a ser designada Escola Professor Manuel Sérgio, em cerimónia oficiada por Fernando Medina, presidente da CML, que no ensejo destacou “o carácter profundamente humanista de toda a sua intervenção”, lembrando ainda que o homenageado nunca deixou de “pensar na análise da realidade, da vida que nós temos, a partir do ângulo único, principal, absoluto, que é a dignidade da pessoa humana.” À saída, depois de descerrar a placa, um emocionado Manuel Sérgio diria aos jornalistas que, para si, aquele tributo era mais valioso do que um Prémio Nobel.
No ano seguinte, em Março de 2017, foi feito comendador da Ordem da Instrução Pública pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, distinção que se juntou à Medalha de Mérito Desportivo, atribuída pelo Presidente Sarney em 1990, à Honra ao Mérito Desportivo, dada pelo governo português em 2007, à Medalha de Ouro da cidade de Almada, à medalha “Reconhecimento”, conferida em 2004 pela Associação Portuguesa dos Árbitros de Futebol, e a uma homenagem da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, em Novembro de 2007, por iniciativa do deputado Simão Pedro, líder parlamentar do Partido dos Trabalhadores. A convite do PT, fez uma palestra sobre Paulo Freire, em São Paulo, em 2001, e, antes disso, discursou na celebração dos 500 anos do “achamento” do Brasil organizada pela prefeitura de Passo Fundo, onde foi recebido como Hóspede Oficial do Município.
Nos dias 20 e 21 de Março de 2017, na Sala do Senado da Assembleia da República e no Auditório 2 da Fundação Gulbenkian, teve lugar o “Colóquio Internacional Professor Manuel Sérgio - Obra e Pensamento”, com presenças de Luís Filipe Vieira, Toni e Simões, e intervenções de dois Jorges, Jesus (“é um homem, em minha opinião, com uma inteligência acima da normalidade”) e Lacão (“bem-haja professor!).
O colóquio foi organizado pela Universidade Aberta e pela sua Cátedra Infante Dom Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos e Globalização e contou com a presença de uma delegação cabo-verdiana de alto nível, encabeçada pelo próprio Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, que na ocasião afirmou, entre o mais, que “Manuel Sérgio sempre nos interpelou para a urgência de um saudável diálogo entre a interioridade e a exterioridade.” E mais disse, deixando a plateia em cuecas, que “é como se o nosso amigo procurasse, ao longo do seu vasto e frondoso magistério, ignorar permanentemente a astuciosa e valente resposta de Ulisses ao desafio de Laodamante, o belo filho de Alcínoo.” De seu lado, o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, enalteceu a “homenagem a um dos nossos melhores, alguém que, na mais pura das verdades, se homenageou em si em toda, e por toda, a sua vida e o continua a fazer em toda a sua dinâmica acção e em todo o seu acutilante pensamento”, rematando, a concluir, bem formiguinha, “olhamos para Manuel Sérgio com a admiração que apenas conseguimos votar aos que - por melhores que tentemos ser - serão sempre maiores do que nós.”
Ao congresso associaram-se diversas instituições - além da Gulbenkian, da Assembleia da República e da Universidade Aberta, o Governo de Portugal, a Faculdade de Motricidade Humana, o CLEPUL (Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa), o Instituto de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes, a Câmara Municipal de Lisboa - e distintas personalidades, como João Paulo Rebelo, secretário de Estado da Juventude e do Desporto, Augusto Baganha, presidente do Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), Paulo da Silva Dias, reitor da Universidade Aberta, Guilherme d’Oliveira Martins, José Carlos de Vasconcelos, José Barata-Moura, Viriato Soromenho-Marques, Aurélio Pereira, Vítor Serpa, José Lourenço Pinto, presidente da Associação de Futebol do Porto, Patrick Morais de Carvalho, presidente de Os Belenenses, José Manuel Constantino, presidente do Comité Olímpico de Portugal, os vice-presidentes da Assembleia da República Jorge Lacão e António Filipe, os deputados Laurentino Dias, Edite Estrela, Emídio Guerreiro, João Azevedo Castro e last but not the least, Eduardo Lourenço, Francisco Louçã e Gonçalo M. Tavares.
O homenageado reciprocou, agradecendo a “homenagem que visa inserir o meu nome no friso dos raros autores que fizeram filosofia e ciência”. Revelou que, não podendo estar presente, o Presidente Marcelo (um “homem universal”) ligou-lhe a partir do estrangeiro, sempre simpático. Ao primeiro-ministro António Costa, também ausente, chamou “pessoa de fulgurante perspicácia”, patente na escolha do ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, “um cientista de autêntica craveira internacional”. Para o Presidente de Cabo Verde, a saudação a uma “inteligência ágil, incisiva” e a um “humanismo servido por uma verdadeira sensibilidade poética”. Também o “sortilégio do talento, da sensibilidade e da cultura do Dr. Guilherme d’Oliveira Martins”, o cumprimento a Luís Filipe Vieira, “presidente de impressionante e singular ressonância do Sport Lisboa e Benfica” (de Pinto da Costa já dissera, em tempos, que era um “homem livre de uma liberdade que não deserta nunca!”), à “inteligência de excepcional amplitude” de Eduardo Lourenço, “um dos maiores ensaístas da nossa história literária e filosófica”, e ao poeta António José Borges, “que me parece marcado pelo signo do êxito e pelo estudo ousado que fez à minha poesia.”
Em 2019, e por proposta do actual cardeal Tolentino Mendonça, a Universidade Católica Portuguesa criou a Cátedra Manuel Sérgio - Desporto, Ética e Transcendência (“o desporto actual reproduz as taras do capitalismo”, disse Sérgio aos jornalistas, na cerimónia de instituição), que já realizou três “Colóquios Internacionais Manuel Sérgio” e vários “Seminários Manuel Sérgio” (já antes, tinham sido organizadas pela LIDEL as “Conferências Manuel Sérgio”, por iniciativa do advogado Luís Miguel Henrique, causídico de Jorge Jesus e comentador da SportTV, de Vítor Serpa e do arquitecto José António Saraiva).
A consagração máxima, definitiva, surgiu há poucos meses, sob a forma de entrevista de vida a Fátima Campos Ferreira para o programa “Primeira Pessoa” (RTP, 15/5/2023, em cujo genérico se diz, vá-se lá saber porquê, que Sérgio nasceu no Porto). Logo a abrir, anunciando “uma viagem ao mundo de Manuel Sérgio”, a jornalista afirmou que “a sua obra maestra é ter pensado o corpo e o espírito em conjunto e ter feito do desporto uma das mais nobres artes do pensamento”; depois, virando-se para o entrevistado, atirou-lhe à cara, olhos nos olhos: “o senhor é o primeiro em Portugal a abandonar a filosofia cartesiana, o espírito para um lado, o corpo para outro”. Em réplica, Sérgio desfiou os nomes das lendas que conheceu no futebol e no hóquei, com Matateu em realce, deixando ainda afirmado que “para mim, o universo é um vasto pensamento onde tudo caminha porque um pensamento o norteia” e, sobre a questão cruciante do Tempo, “o tempo anda, tudo caminha, e tudo o que não caminha à vista de todos, caminha por baixo”, como é comprovado, segundo ele, pelos “cortes epistemológicos”. A meio do programa, por volta do minuto vinte, já Fátima estava a arfar, prostrada aos pés do profeta.
Manuel Sérgio considera-se um agnóstico devoto (“não sei quem é Deus, mas vivo como se o conhecesse”), descrê dos Evangelhos (“não acredito muito no Evangelho que deve ter cortes na vida sexual de Cristo, é uma estupidez…”), afirma, contudo, que vai morrer católico (“não tenho outra saída”), mas “se Cristo não estiver à minha espera, o problema é dele”. Possui o bilhete de identidade n.º 0125296, vitalício, mora num segundo andar na Avenida de Berna, está casado há décadas, tem filhos, netos e bisnetos, ainda usa termos de outros tempos, referindo-se aos jovens como “a mocidade”. À esposa, cujo nome não conseguimos apurar, dedicou o poema “A Mestra de Lavores”, que termina assim: E vejo-te mulher fada encantada / Num fulgor de linhas e de tons / Adorada por anjos e por aves. Como confessou a Fátima Campos Ferreira que é ela, à maneira antiga, quem cuida por inteiro da frente doméstica, sendo ele “um homem que só lê, só lê e escreve”.
Nunca praticou desporto, mas teorizou-o muito, e como poucos. Ou seja, e talvez sem se aperceber disso, incarna em si mesmo o dualismo que se propôs combater, pois se é possível teorizar o desporto sem praticá-lo, por simetria e justiça também será possível praticá-lo sem o teorizar.
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É vil e desajustado caracterizar Manuel Sérgio como um fala-barato, até porque ele aprecia e maneja palavra caras, mas de belo efeito. De resto, o uso e abuso das mesmas compreende-se no quadro de uma disciplina bebé ou teenager, ainda insegura da sua própria cientificidade, falha que procura colmatar seja através da proclamação reiterada do seu estatuto académico, seja através do recurso a um sem-fim de expressões-conceito inacessíveis aos comuns mortais e, logo, de escassa ou nula operatividade prática para a obtenção do fim a que se propõe, a construção de uma “cidadania”. Isto dito, e além do respeito devido a uma pessoa da sua provecta idade - e ao trabalho e esforço que o levaram onde chegou -, importa reconhecer que Manuel Sérgio deu um contributo ímpar, inestimável, para a renovação do ensino do desporto em Portugal, agora feito à luz da disciplina da Motricidade Humana, e, com isso, para a refundação e afirmação de uma escola de reconhecida qualidade e modernidade.
Simplesmente, ao instaurar um novo paradigma na sua área de especialização, Manuel Sérgio converteu-se ele próprio num paradigma, produto e reflexo - e logo, estudo de caso - da vida académica portuguesa e do campo cultural nacional, ambos dominados por lógicas paroquiais e endogâmicas de auto-elogio mútuo (“tu és um génio, eu sou um génio”) e por um sistema de trocas e de favores baseado na tríplice aliança dos colóquios de homenagem, das apresentações de livros e prefácios laudatórios (é extensa e impressionante a lista dos seus prefaciadores, num espectro que vai de Francisco Louçã a Roberto Carneiro, passando por Medeiros Ferreira, Batista-Bastos, Urbano Tavares Rodrigues, Carlos Fiolhais, José Barata-Moura, José Mourinho, etc., sendo também impressionante, claro está, a quantidade de prefácios que ele próprio escreveu). O seu caso é ainda ilustrativo dos cruzamentos, nem sempre sadios, entre universidade, política e desporto, patentes na suruba de académicos, governantes, deputados, atletas, treinadores e dirigentes desportivos que se acotovelaram para o preitear, fazendo-o, uma vez mais, de acordo com o velho princípio toma lá, dá cá, ou seja, homenageando-se a eles próprios através do celebrado. Quanto a este, teve, em suma, a ventura de ser reconhecido em vida, coisa que entre nós tem faltado a tantos outros, alguns bem mais merecedores do que ele.
*Prova de vida (59) faz parte de uma série de perfis
Escreve de acordo com a antiga ortografia.