Quer queiramos, quer não, quase tudo o que dissermos, ou soubermos dizer, sobre os filmes Mal Viver e Viver Mal (ambos lançados hoje em mais de duas dezenas de salas) esbarra numa interrogação, de uma só vez curiosa e desconcertante. A saber: como vê-los? Ou ainda: qual deve ser visto em primeiro lugar?.Não vale a pena dramatizar, muito menos contribuir para esse jornalismo preguiçoso que, cada vez que depara com uma situação incomum, saca da palavra "polémica". A resposta é linear: os filmes podem ser vistos por qualquer ordem. Em todo o caso, o simples facto de a pergunta surgir - e, para todos os efeitos, ser pertinente - reflete a ousadia, de uma só vez narrativa e simbólica, assumida pelo realizador João Canijo. Num tempo em que a definição comercial dos filmes continua, na maior parte dos casos, a ser gerida por um marketing de ideias formatadas, Mal Viver e Viver Mal aí estão para, no mínimo, questionarem os nossos hábitos de espectadores..Isto porque perguntar qual a "ordem" a que os filmes obedecem é reconhecer implicitamente, porventura inconscientemente, que alguma relação com eles podemos estabelecer. Dito de outro modo: trata-se de colocar em cena uma "mesma" realidade, duplicando-a através de duas narrativas geminadas, ainda que inequivocamente diferentes. O que, convenhamos, expõe com serena claridade uma verdade audiovisual todos os dias recalcada pelo alarido mediático em que vivemos: quando muda o ponto de vista, a narrativa muda, mesmo que os factos referidos se repitam..Confesso que sinto alguma resistência a resumir os dois filmes como um "retrato de mulheres", reconhecendo que, ao resistir, corro o risco de passar ao lado da sua fascinante riqueza e complexidade. Seja como for, é um facto que o núcleo dramático dos dois filmes pode ser definido como uma paisagem de personagens femininas - em Mal Viver, descobrimos as relações difíceis de várias mulheres de três gerações da mesma família, de uma maneira ou de outra ligadas à gestão de um hotel numa zona costeira do norte de Portugal; através de breves apontamentos, vamos conhecendo algumas das pessoas hospedadas do hotel (também quase todas mulheres), personagens que se tornam principais em Viver Mal..Porquê resistir, então? Porque creio que seria francamente redutor lidar com tudo isto como se fosse um "panfleto" sobre o "feminino". Há, de facto, uma ideologia alicerçada na defesa do "direito à diferença" que, por vezes, em particular no cinema (português ou não), tende a suscitar generalizações pueris que, a meu ver, acabam por esvaziar as próprias causas que defendem. Ora, se há "mensagem" que atravessa as muitas nuances emocionais das personagens de Mal Viver e Viver Mal é de outra natureza, porventura mais incómoda, seguramente não panfletária: a pertença a um mesmo espaço familiar não unifica as personagens destes filmes - divide-as..O que se revela fundamental nesta dinâmica não decorre, por isso, de qualquer "sociologia de bolso" sobre o feminino. Retomando a trajetória obsessiva de filmes anteriores (recordo o caso modelar de Sangue do Meu Sangue, lançado em 2011), João Canijo aposta numa revalorização do próprio cinema enquanto linguagem cúmplice da enigmática e contraditória pluralidade das relações familiares - relações de sangue, precisamente. Nos seus filmes, ninguém, mesmo as personagens de maior candura (sobretudo essas), consegue escapar aos fantasmas que habitam as famílias..Há qualquer coisa de ambiguamente metafísico nesta visão. Tudo o que vemos e ouvimos - lembremos o primoroso trabalho de direção fotográfica e sonora, respetivamente de Leonor Teles e Tiago Raposinho - expõe as convulsões muito concretas de um universo sempre à beira da derrocada emocional; ao mesmo tempo, cada personagem vive assombrada por uma espécie de duplo interior, cruel e destrutivo..Mal Viver e Viver Mal dão-nos a ver (e escutar) tudo isso através de um realismo, também ele ambíguo, sempre tocado pela possibilidade de um "surrealismo" errático, capaz de contaminar gestos, palavras e cenários. E tanto mais quanto João Canijo continua a ser um cineasta que concebe as suas ficções a partir de um minucioso trabalho com os atores e, como é óbvio, em particular com as atrizes - Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida e Vera Barreto são os rostos principais de um elenco brilhante em que também encontramos, entre outros, Nuno Lopes, Leonor Silveira e Beatriz Batarda..A ordem, ou melhor, a desordem familiar de Mal Viver e Viver Mal não satisfaz essa utopia de um espaço obrigatoriamente redentor, utopia que circula, todos os dias, entre telenovela e publicidade. O olhar cinematográfico interpõe-se, não tanto como arauto de pessimismo, antes como exercício narrativo que resiste à formatação das histórias em que nos revemos - pequena utopia, grande cinema. Vale a pena citar algumas palavras de Louis Aragon: "Vi tanta gente viver tão mal / E tanta gente morrer tão bem"..dnot@dn.pt