Leão de Ouro - obviamente Lanthimos e suas 'Pobres Criaturas'!

Palmarés sem surpresas: vitória de um filme de estúdio de Hollywood, <em>Pobres Criaturas</em>, de Yorgos Lanthimos, do melhor que se viu em Veneza. Mas custa constatar a ausência de <em>Maestro</em>, de Bradley Cooper, ou mesmo de <em>Hors-Saison</em>, de Stéphane Brizé.
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Aos 80 anos o Festival de Veneza teve uma das melhores seleções oficiais de sempre. Uma mistura forte que conseguiu acertar em cheio em alguns dos melhores filmes da próxima temporada e sobreviveu à intempérie da greve dos atores americanos. Aliás, sobreviveu e ainda conseguiu ter uma passadeira vermelha que foi de respeito, mas que, se calhar, mostrou que os realizadores também podem ser estrelas : David Fincher e Wes Anderson, por exemplo, foram recebidos pelos fãs como ídolos.

Quanto aos prémios, o Leão de Ouro não ficou mal nas mãos do preferido dos críticos internacionais: Pobres Criaturas, o favorito, venceu o Leão de Ouro numa fantasia que volta a colocar o grego Yorgos Lanthimos no topo do prestígio do cinema europeu. Mais uma vez, um filme americano a conseguir o prémio máximo, depois da vez de Laura Poitras com Toda a Beleza e Carnificina. O cineasta de A Favorita fez um discurso onde lembrou a greve e salientou que esta obra só foi possível graças ao talento de Emma Stone, atriz que não terá vencido a Copa Volpi de interpretação (não é possível nenhum filme acumular distinções no palmarés). Recorde-se que a dupla Lanthimos-Stone já tem outra longa pronta: And. Recorde-se também que a cantora Carminho tem um pequeno papel no momento em que a "criatura" de Emma Stone ataca pastéis de nata em Lisboa.

Já esperado o Grande Prémio para Evil Does not Exist, de Ryûsuke Hamagusgi, que discursou em japonês agradecendo a distinção, logo a seguir ao Óscar obtido no anterior Drive My Car. Desta vez, fez um filme sobre o confronto entre a cidade e o campo, um drama amigo da ecologia que terá impressionado pelo seu equilíbrio dramático que inventa uma perturbante tragédia no seu último ato.

Jane Campion foi a jurada a entregar o muito aplaudido Leão de Prata de realização para Io Capitano, o dever moral de Matteo Garrone, o tal filme que mostra o outro lado da crise dos migrantes, a sua viagem de África para a Europa. Um cineasta que chamou os seus atores jovens ao palco, jovens que chegaram à Europa através de uma odisseia semelhante às das suas personagens. Foi um dos muitos momentos criadores de lágrimas na plateia.

Nos atores, Peter Sarsgaard, um dos favoritos venceu a Taça Volpi de melhor ator. O ator americano que interpreta um demente apaixonado por Jessica Chastain em Memory, de Michel Franco. Curiosamente, no seu discurso falou de um silêncio coletivo que aludiu a uma alegria comunal, mas também falou da partilha da experiência humana. Um vitória justa para um ator que merecia mais palco no cinema americano. Porque perder-se num papel pode ser isto, o que talvez já não acontece com a interpretação feminina premiada, Cailee Spaeny, a Priscilla Presley do medíocre Priscilla, de Sofia Coppola. Mas não há dúvida que a jovem atriz americana está em alta com este prémio, perfeito para o seu nome ir para cima do poster do novo de Alex Garland, Civil War.

O prémio especial do júri foi para Green Border, o já polémico filme de Agnieszka Holland, que no palco da Sala Grande foi célere em declarar que não foi fácil fazer este filme que denúncia a situação trágica dos migrantes que tentam entrar na Polónia através da Bielorrússia, lembrando que enquanto fala há pessoas escondidas naquela fronteira e privadas da sua dignidade.

Sem palavras ficou o senagalês adolescente Seydou Sarr, o protagonista de Io Capitano, vencedor do prémio de melhor ator jovem, o prémio Marcello Mastroianni. Foi dos momentos mais comoventes da noite.

Leão de Ouro - Pobres Criaturas - Yorgos Lanthimos

Grande Prémio - Evil Does Not Exist - Ryûsuke Hamagushi

Leão de Prata - Realização - Matteo Garrone - Io Capitano

Prémio do Júri - Green Border - Agnieszka Holland

Taça Volpi melhor ator: Peter Sarsgaard - Memory

Taça Volpi melhor atriz: Cailee Spaeny - Priscilla

Diário de Notícias - Rui Pedro Tendinha
Maestro - Bradley Cooper

Expresso- Jorge Leitão Ramos
Pobres Criaturas- Yorgos Lanthimos

MagazineHD- José Vieira Mendes
Pobres Criaturas - Yorgos Lanthimos

Antena 1- Tiago Alves
Maestro - Bradley Cooper

Antena 1 - Lara Marques Pereira
Maestro - Bradley Cooper

Público - Vasco Câmara
Maestro - Bradley Cooper

O mundo e as suas causas

Foi um festival de temas e que convocou causas "importantes". Os chamados filmes urgentes e necessários. O cinema com a ordem do mundo. A grande questão num festival de cinema é separar o conteúdo da forma - velha questão, pois então, e que Damien Chazelle, presidente do júri, quis logo à partida deixar claro que a qualidade artística vem primeiro.

Da Polónia houve um filme que conseguiu fazer bem a síntese entre valor artístico e mensagem política, Green Border, de Agnieska Holland, uma visão de choque sobre os horrores que se passam com a situação dos migrantes entre a fronteira da Polónia com a Bielorrússia. Imagens que mostram um salto para um horror da geopolítica atual e que faz com que haja negócio na morte e circulação daqueles que nada têm. Óbvio que o governo polaco, mesmo sem ver o filme pronto, "apertou" com Holland.

Por outro lado, Matteo Garrone mostrava a experiência física dos migrantes desde África em Io Capitano, mas abusava das imagens de "sofrimento", glorificadas com um tom de grande espetáculo de cinema milionário. E também da Polónia Woman of, de Malgorzata Szumowska e Michal Englert, acenava a bandeira do arco-íris LGBT+ com o relato de uma aceitação social de um transsexual de meia-idade. O habitual problema das boas intenções a traço grosso..

Revelações

Uma Mostra que foi generosa com os jovens. Cineastas e atores. Sofia Coppola, por exemplo, apostou numa Priscilla Presley inocente e que pudesse ser adolescente e mulher em Priscilla. Encontrou uma Cailee Spaneany que dá conta do recado de forma graciosa. Uma descoberta que encena uma pista de delicadeza.

Em Making Of, de Cédric Kahn, há também um novo rosto que traz uma intensidade em carne viva: Stefan Crepon, jovem francês que já era ótimo quando se estreou em Peter Von Kant, de François Ozon, ou mais uma prova de que o talento francês está de boa saúde nas novas gerações.

Desilusões

Havia expectativa alta: Roman Polanksi a brincar com os seus vizinhos ricos de Gstaad numa comédia cruel chamada The Palace. Mas o seu humor não vai além de um pequeno afrontamento senil, com escatologia que exibe excrementos, vómitos e urina.

Mas a deceção a sério é o vario de Io Capitano ou Matteo Garrone sem nada para filmar no espetáculo dos horrores das viagens de morte dos migrantes até à Europa.

Sons

Exato: sons. Foi no design de som que muitos filmes treparam pela nossa pele. O mal em Evil does Not Exist, de Hamagushi, desdobrava-se com o corte ríspido na montagem da música, enquanto que a agressão sonora bem alta em Aggro Adr1ft, de Harmony Korine impôs qualquer coisa.

A morte e a sombra teve cortesia do best-of dos Smiths em The Killer, de David Fincher, o contrário do que Brizé encenava com assobios em Hors-Saison. Ouvir antes de ver...

Festival de Atores

Muito se disse que foi uma Mostra sem a presença dos atores americanos, das estrelas. A ausência deles no tapete vermelho não fez pandã com a excelência dos seus trabalhos no grande ecrã. Nesse sentido, foi mesmo um festival de interpretações.

Fica-se com o movimento desengonçado da criatura de Emma Stone em Pobres Criaturas, mas também com o estado de embriaguez de Mark Ruffalo com o episódio alfacinha no mesmo filme.

Impossível também não ficar tomado com a voz e a pose de Bradley Cooper como Bernstein no seu Maestro. Uma interpretação que não é só da ordem do mimetismo, tal como Carey Mulligan como a sua mulher, atriz que abocanha as cenas onde entra sem parecer forçado.

Da Suíça, agigantou-se o alemão Franz Rogowski, camaleão constante em Lubo. E foi também com poderes camaleónicos que, fora-de-competição, Glen Powell, em Hit Man, foi muitos assassinos contratados ao mesmo tempo. Ele sim, mesmo em greve, foi quem mais lucrou com a Mostra.

O olhar de ódio da irlandesa Kerry Condon em In The Land of Saints and Sinners é também uma das assombrações que na secção Horizontes não saiu da cabeça de quem viu.

Por fim, três nomes que fizeram com que os festivaleiros ficassem perto da alma das suas personagens: Alba Rohrwacher e Guillaume Canet nessa balada esfuziante que é Hors-Saison e Peter Sarsgaard, perto de um estado de abandono siderante em Memory.

Os que não vieram

É seguro dizer-se que alguns dos maiores filmes do ano estiveram por aqui e também que a corrida a sério aos Óscares começou com os petardos da Netflix e da Disney. Pois bem, mas houve sombras de filmes que não foram selecionados por decisão do diretor Barbera ou por não estarem prontos.

Ao que parece, The Way of the Wind, de Terrence Malick ainda está nos retoques finais, mas também era apropriado termos tido cinema português: Pavese por Tiago Guedes em Diálogos depois do Fim caía tão bem fora-de-competição, tal como Napoleão, de Ridley Scott, porventura o tal corte de 4h30 que não vai estrear nos cinemas...

Mas a frustração é mesmo a ausência de The Bikeriders, com Austin Butler e Tom Hardy, aí sim o festival arriscava com cinema americano de um autor que está a precisar de consagração para além de Cannes e Berlim, Jeff Nichols.

O que se disse

Em Veneza, para além da polémica aprovação ao beijo de Rubiales por Woody Allen, falou-se de cinema sob muitas vozes.

Richard Linklater contava ao DN que o novo sistema de Hollywood matou a possibilidade do género da comédia funcionar, enquanto que aos 80 anos Michael Mann queixava-se da greve que o impede de finalmente começar a trabalhar em Heat 2.

Por sua vez, o francês Quentin Dupieux afirmou que as competições em festivais é algo que não ambiciona muito mas que já está pronto para um dia ser chamado a concorrer à Palma de Ouro de Cannes.

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