Karim Leklou: “Estava insuportavelmente cansado nesta rodagem e isso foi muito bom”
Karim Leklou, a maior revelação do cinema francês dos últimos tempos.

Karim Leklou: “Estava insuportavelmente cansado nesta rodagem e isso foi muito bom”

Um dos melhores filmes desta primavera chama-se 'Vincent Tem de Morrer', de Stéphan Castang, com o imperial Karim Leklou, o nome da berra do cinema mais autoral francês, e estreia-se na quinta-feira. Trata-se uma espécie de filme de zombies sem zombies. O ator falou com o DN e recusa os louvores da aclamação francesa.
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É porventura o mais excitante ator da sua geração do cinema francês. Um ator dos atores. Karim Leklou, rosto de mártir, olhos de infinita tristeza, mais uma vez esplêndido nesta fantasia distópica chamada Vincent Tem de Morrer, uma azarada vítima de um vírus estranho que faz com que seja constantemente atacado na rua por estranhos, sejam crianças ou amigos. Depois de Os Filhos de Ramsés, de Clément Cogitore, mais outra jóia de platina na sua coleção de grandes personagens. Em Paris, antes de falar do filme, não se cansou de perguntar acerca da Liga portuguesa de futebol.

Diria que Vincent Doit Mourir é uma metáfora sobre a nova solidão desta sociedade? 
É isso mesmo! Vivemos num mundo ultra comunicante e que nos faz estar demasiado conectados uns com os outros nas redes sociais, só que isso faz-nos ficar mais isolados. É formidável comunicarmos tanto para dizer tão pouco. Passamos a vida a dizer o mesmo.

Ficamos isolados nessa ilusão.
Sobretudo nas grandes cidades... E há cada vez mais pessoas a terem depressões sérias. O filme faz um paralelismo com a noção de estar isolado em sociedade. É o mundo moderno...

O filme sugere que depois da covid a herança possa ser um vírus do Mal...
Sim, passa por termos ficado todos mais frágeis e por uma noção do absurdo. A minha personagem pensa que esse Mal vem do olhar, enfim... Na covid senti que nunca houve uma explicação científica racional para tudo aquilo - ainda hoje há coisas que nos escapam. Nesse aspeto, há algo que é transportado para a nossa modéstia. O filme também nos parece dizer que não evoluímos nada após a pandemia. Acho interessante pensarmos que depois da Grande Peste também não evoluímos - mesmo apesar de todo o avanço tecnológico ficamos isolados e a tentar sobreviver através de esquemas básicos. 

E no caso desta história, ser invisível pode salvar a nossa pele.
Tenho a impressão que hoje muitos querem ter uma vida pouco visível para evitar problemas. Vivemos com medo da antecipação dos problemas. Trata-se da tal coisa de evitar olhar olhos nos olhos. E o que gosto mais no filme é que não há estetização deste absurdo. Tudo é duro, violento e cómico. Não há aqui cenas “magníficas” à Tarantino. Gosto deste lado de mostrar o absurdo da violência com a comédia. E aquela luta nas fezes do gado é bastante cómica!

Constrói as personagens mais pela via intelectual ou física?
Aqui construí de forma sobretudo física. A ideia foi encontrar a violência de uma forma surpreendente, com a linguagem do corpo e não tanto de forma psicológica. Queríamos encontrar as emoções através dos corpos, por isso repetíamos muito as cenas de pancadaria. Joguei muito com a fadiga e a exasperação. Foi realmente interessante jogar com o meu estado de cansaço e o da personagem. Estava insuportavelmente cansado nesta rodagem e isso foi muito bom. O corpo falava antes de eu pensar...

É duro ser o ator da moda em França?
Não, não sou, mesmo! Nem creio que seja um ator de culto. Sou realista, há por aí tanto outro talento... Não estou nesta profissão para essas coisas do reconhecimento...

Mas é tão falado...
Pode ser, mas não posso ser sensível às vagas. Não faço cinema para ter aclamação. Não quero saber de modas, interesso-me é por futebol! Nem tenho estratégias de carreira - faço os filmes que tenho vontade. Isso é muito diferente, faço os filmes de que gosto.

E tem feito  os filmes certos, a sua interpretação em Os Filhos de Ramsés é qualquer coisa que pressupõe um marco...
Eu adoro esse filme! É um filme muito, muito bom! Não sou muito objetivo mas adoro o realizador e tive muito gosto em estar nessa rodagem. Por exemplo, adoro também Vincent Tem de Morrer e, curiosamente, são filmes completamente diferentes! Em comum, são feitos por realizadores com um ponto de vista forte. Atrai-me o cinema feito com coerência artística. Sou um ator muito curioso por encontrar visões diferentes. Não me quero repetir nem estar sempre a fazer o mesmo tipo de cinema. Amo ser surpreendido.

Cada vez surgem mais filmes franceses nas salas portuguesas. Com toda essa força da indústria sente que no seu interior há uma ideia de comunidade entre os artistas?
Falando por mim, há pessoas que reencontro com prazer. Mas a minha comunidade não é o cinema, está fora dele: os meus amigos, a minha família... Digo isto mesmo tendo boas relações com alguns atores. Mas não chamo ao pessoal do cinema a minha família...

Uma demência a rasgar o cinema francês

Vincent Tem de Morrer, de Stéphan Castang, teve a sua primeira exibição em Portugal no MOTELx.

Todos querem matar Vincent, um quarentão solitário que faz terapia, foi abandonado pela namorada e não parece ter nada de especial. Aos poucos, este ser desgraçado percebe que ele é um dos muitos azarados vítimas de um inexplicável vírus que o torna alvo de pessoas normais que se tornam momentaneamente assassinos. E, claro, torna-se num fugitivo que se refugia na casa de campo e isola-se para tentar sobreviver. 

Vincent tem de Morrer é uma comédia de suspense capaz de subverter o estafado modelo do filme de zombies. Tem um humor negro que é quase genial a comentar uma sociedade que torna certas pessoas invisíveis e sabe ser sempre lesto como thriller de fuga. E, acima de tudo, vive da energia de um ator a todos os títulos notável, um Karim Leklou que inventa um grau zero de carisma tão hilariante como tocante. Só o seu génio para dar a este pobre diabo um humanismo inusitado.

Em Cannes 2023 tornou-se “no” filme de culto, vindo da Semana da Crítica. É um filme inspiradíssimo a meter medo, dotado a inquietar e implacável como tese social, sempre no subterrâneo. À sua maneira, iconoclasta e divertido na sua selvajaria, nunca deixando de prometer uma tensão animal. Nós, os espectadores, sentimos tanto a demência como um atrofio que é novo. Stéphan Castang, o realizador, fez uma parábola sobre como estamos todos possuídos nesta “vida moderna” informatizada. Uma tragédia de um homem só que é um dos filmes franceses mais importantes dos últimos anos.

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