Juliette Binoche: “As pessoas apaixonam-se por este filme porque é sobre o amor”
Um dos casos da temporada. O Prémio da Realização de Cannes 2023, O Sabor da Vida, ode aos prazeres gastronómicos e do mais sensual amor. O triunfo de Tran Anh Hung, cineasta do Vietname radicado em França, aqui a ensaiar uma aproximação Zen ao romance, pegando num casal premium do cinema francês, Benoît Magimel e Juliette Binoche, antigo par na vida real.
Daqueles filmes cuja constelação parece toda certa: graça, ritmo e emoção. Uma emoção poética que dá bom lustre à história de um chef especialista em comida tradicional francesa e a sua relação amorosa-profissional com a sua cozinheira. Tudo parece mudar quando a cozinheira revela um problema de saúde e é aí que o mestre de cozinha deixa a teoria e se volta para os pratos: cozinhar para quem se ama! Le Passion de Dodin Bouffant propõe um pacto de tempo para o espectador: ficarmos a seguir com rigor a preparação dos pratos. Sem pressas. O resultado é uma partilha de intimidade, quase como que um segredo, sem receitas...
“O silêncio que proponho no filme é uma questão de contraste. Se peço ao espectador que fique com muita atenção aos diálogos, depois dou-lhe silêncio até que apareça de novo a ânsia pela voz humana. Desta forma, o espectador fica bem mais desperto. A cena em que os dois amantes estão juntos ao lado da água, após um dia de muito trabalho, quis criar um ambiente de fadiga. Mas uma fadiga boa...E, claro, queria os atores a falar calmamente. Isso cria uma atmosfera particular”, começa por nos dizer o realizador numa entrevista em Paris, meses depois do Festival de Cannes.
Na sala ao lado, uns minutos antes, o DN enfrenta uma Juliette Binoche com uma visível gripe, mas sem perder um sorriso que rima com o orgulho que a atriz tem por este filme: “As pessoas apaixonam-se pelo filme porque é sobre o amor e porque é também um filme-gourmet. Creio que não existem outras explicações.”
É de novo um momento alto na carreira de uma atriz que consegue conciliar, na maior das perfeições, as incursões no cinema de Hollywood com a mistura entre cinema de indústria francês e a aposta em cineastas-autores. Ela que agora é, a partir desta semana, a presidente da Academia Europeia de Cinema.
“Tran Anh Hung não é um cineasta que tenha medo dos silêncios e de recusar a música. É alguém que deixa espaço a outras coisas que acontecem numa cena. Trata-se de uma qualidade dos maiores cineastas que são corajosos perante o vazio. Não é que não se passe nada, mas é algo que permite que o espectador sinta tudo de forma diferente”, comenta a atriz, que não se coíbe de mencionar o seu reencontro com Benoît Magimel, seu antigo companheiro de vida.
“É um elemento que permite que o filme nos dê uma relação de amor cujo cinema não costuma captar. Aquelas nossa cenas duram, são longas... Trata-se de uma relação que resulta, mesmo quando a morte chega. Não estamos habituados a isso - no geral, as relações de amor no cinema têm conflitos, drama, disputas e não sei mais o quê...Aqui tudo é diferente. Podemos chamar-lhe serenidade, mas não sei...Até acho que a minha personagem esconde o medo de morrer e de deixar aquele amor e aquela cozinha. Ainda assim, aquele casal vive um amor feliz e profundo, daqueles que nos deixa com inveja!”
Insistimos, arriscamos: foi arriscado filmar com um antigo amor? “Depois da nossa separação tive uns tempos duros. Passados estes anos todos, estar num plateau junta com ele foi algo que me deixou espantada e comovida, sim... Mas não sei explicar por que razão, ele está neste grande momento da sua carreira. É o mistério da vida, talvez”.
A palavra serenidade obviamente passa pelos lábios do realizador: “Este filme é um manifesto de serenidade. Creio que é importante relembrar às pessoas que o cinema pode ter este tempo, não podemos esquecer isto, sobretudo porque a nossa vida é demasiado rápida com todos os problemas que o nosso mundo vive. Quis fazer um filme que pudesse celebrar o melhor do ser humano e filmar uma relação doce e com respeito, capaz de refletir humanidade”.
E quer o realizador, quer a atriz confirmam: o que vemos nos tachos e panelas é verdadeira comida ao fogo. Ou seja, é mesmo Binoche a confecionar as mais sagradas receitas da melhor gastronomia francesa, não há os truques da comida “pintada” ou aldrabada. “O filme dá aquela sensação de que a comida é preparada com amor, porque aquele casal encontrou uma harmonia, na qual cada um sabe o seu lugar. Eles completam-se, de alguma forma, num pequeno castelo lindo no campo, em plena primavera... E não precisam de falar dos outros, mesmo que nesse lado idílico haja algo burguês, embora assumido.”
Tran Anh Hung não quer encontrar boutades, mas é firme numa convicção: “Este filme seria outro se fosse realizado por um francês. O facto de ser vietnamita permite que tenha uma outra distância sobre a arte culinária francesa. Vejo melhor certas coisas, porque os franceses estão mais habituados, mas quis conscientemente fazer um filme muito francês na medida em quis dar aos franceses aquele prazer de verem coisas na sua gastronomia que provavelmente já não valorizavam.”
No fim do encontro, o realizador relatava com mágoa a pressão e o bullying que viu dos produtores de Anatomia de uma Queda, quando este não foi o escolhido para França para a escolha oficial para a categoria de melhor filme internacional. Curiosamente, uns minutos depois, O Sabor da Vida não viria a entrar nos cinco filmes nomeados e, como se sabe, Anatomia de uma Queda viria a ganhar o Óscar de Melhor Argumento...
Rui Pedro Tendinha, em Paris.