JR, artista plástico francês.
JR, artista plástico francês.Gerardo Santos

JR: "Como artistas temos o direito de levantar questões, esse é o poder da arte"

O francês JR, conhecido pelas suas intervenções em espaço públicos, esteve em Portugal para uma exposição e colaborar com Vhils num mural que mostra a criança antes de perceber “o peso do mundo”.
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A tela do artista francês JR é o mundo. As suas obras começam na rua, no chão, em muros e edifícios - alguns icónicos, como o Louvre -, utilizando a técnica da fotografia e colagem e são depois transformadas em quadros que são vendidos em galerias. Foi uma exposição de litografias das suas instalações realizadas em várias partes do planeta, na galeria Underdogs, em Lisboa (JR: Through My Window) e uma colaboração especial com o artista português Alexandre Farto, conhecido como Vhils, que o trouxeram a Portugal.

O artista francês JR e Vhils, em Lisboa, a mostrar as impressões que resultaram do mural.
O artista francês JR e Vhils, em Lisboa, a mostrar as impressões que resultaram do mural.D.R.

“Fizemos um mural juntos de cerca de oito metros de altura e vamos lançar uma impressão especial dele. É uma colaboração onde misturamos ambas as nossas técnicas”, explica JR ao DN sobre a parceria com o artista português.

“Este trabalho é uma continuidade de uma série que fiz na Mauritânia chamada Crianças de Ouranos, sobre crianças. E há uma exposição agora em Londres sobre crianças naquela idade [exposição Outposts, na galeria Perrotin, em Mayfair, em exibição até 3 de maio] , em que estão num momento da sua vida em que não percebem o peso do mundo”, diz JR sobre esta série. “Tenho fotografado crianças assim ao redor do mundo e pegámos numa dessas imagens, na sua luz e no seu movimento. É quase como se elas estivessem a correr na Lua e nós como que recriámos juntos aquela imagem, é uma imagem muito sonhadora”.

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“Gostamos muito de misturar as nossas técnicas, o papel, e no caso dele trabalhar diretamente na parede, e essa imagem foi a combinação perfeita”, diz o artista. O mural Les Enfants d’Ouranos, assim se intitula, está numa parede no estúdio de Vhils, e deu origem a um conjunto de serigrafias e impressões, assinadas e numeradas pelos artistas.

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A série Crianças de Ouranos insere-se no projeto Déplacé·e·s no qual JR retrata crianças refugiadas. O projeto começou em Lviv, na Ucrânia, em 2022, quando o artista e a sua equipa entraram na Ucrânia com uma lona gigante enrolada com uma fotografia de Valeriia, uma das crianças que atravessavam a fronteira para a Polónia para fugir da guerra iniciada pela Rússia. A fotografia foi tirada pelo fotógrafo ucraniano Artem Lurchenko que a enviou a JR. Centenas de voluntários ajudariam depois a desenrolar a tela e a exibi-la pela cidade de Lviv. A foto aérea da imagem faria capa da revista Time na edição de março-abril de 2022.

Lviv, Ucránia, em 2022.
Lviv, Ucránia, em 2022.D,R.

JR e a sua equipa continuaram a fotografar e a mostrar imagens de crianças refugiadas, no campo de Mugombwa, no Ruanda, no campo Mbera, na Mauritânia, na fronteira com o Mali, onde vivem 70 mil pessoas, em La Delícias, um bairro na Colômbia, onde vivem também pessoas que saíram da Venezuela, e na Grécia, na ilha de Lesvos, chamando a atenção para as crianças migrantes que chegam de barco.

Em 2017, JR criou uma instalação gigante junto do muro que separa os Estados Unidos do México, colocando uma fotografia do menino Kikito a espreitar para o outro lado da vedação. Envolveu a comunidade - como é comum nos seus projetos - organizando uma refeição numa mesa gigante que parece atravessar a divisória estendendo-se pelos dois lados da fronteira.

Tecate, Mexico - USA, em 2017,
Tecate, Mexico - USA, em 2017, D,R.

Estas intervenções apontariam para um artista-ativista, mas não é assim que JR se vê. “Esses projetos têm a ver com questões políticas, mas penso que como um artista levantamos questões não damos respostas. E como ativista damos respostas, porque propomos soluções, dizemos que as coisas devem ser feitas desta ou daquela maneira. Cada projeto que eu fiz, até mesmo na fronteira entre o México e os EUA, eu nunca disse que o mundo deveria ser maior ou menor”, diz ao DN.

O artista admite que a escolha dos locais onde decide atuar e os temas que escolhe abordar são uma opção política, mas não passa dali. “É político, mas não é ativismo. É uma linha muito fina, são tudo zonas cinzentas. Mas penso que como artistas, temos o direito de levantar questões e esse é o poder da arte. Não nos diz é assim que deves pensar, ou estas são as pessoas boas e aquelas as más. Levanta a pergunta e és tu que fazes a viagem até à resposta. E isso permite muito maior flexibilidade nos lugares e contextos em que se trabalha”.

Instalação no Louvre, em 2019, por altura do 30º aniversário da pirâmide do museu.
Instalação no Louvre, em 2019, por altura do 30º aniversário da pirâmide do museu. D.R.

JR começou a fazer graffiti nas ruas de Paris aos 17 anos e desde então seguiu um percurso que o levou da clandestinidade até ao artista respeitado que é atualmente, exibindo os seus trabalhos em algumas das mais prestigiadas galerias do mundo.

Estas duas vertentes, o artista de rua e o artista de galeria, sempre estiveram presentes, adianta. “Elas sempre fizeram parte uma da outra, desde o início. Acho que foi em 2007 que fiz colagens na Tate Modern. Eu nunca tinha posto lá os pés à data, mas ainda assim tive a oportunidade de exibir lá. E depois, ao longo dos anos, sempre percebi que as obras de arte me dariam liberdade para autofinanciar o meu trabalho. Liberdade para viajar e decidir onde quero criar”.

Mais do que isso, JR diz que “é mesmo algo que eu protejo e que é uma parte grande do meu trabalho, que não é powered by Coca-Cola ou por outra marca, não há marcas por trás. Então, quando se vê uma obra de arte, sabe-se que são as pessoas que estão a partilhar uma mensagem. É uma grande luta, porque não é fácil e é preciso encontrar financiamento quando são projetos muito grandes. Passo tanto tempo a criar esses projetos como a tenta financiá-los e fazê-los acontecer com liberdade”.

Em grande parte dos trabalhos JR envolve a comunidade, dando-lhes voz, mas também servindo de espelho. “É quase como manter um rasto e uma gravação de comunidades e pessoas com suas histórias. É como um espelho da comunidade. E tenho andado a fazer esses espelhos que se chamam Chronicles [uma das obras desta série foi capa da revista Time em março de 2018]. E faço isso há muitos anos, e quero continuar a fazê-lo em muitas cidades, e espero que um dia possa fazer o mesmo em Portugal”, diz.

Obra de JR, da série 'Chronicles', que foi capa da revista Time em março de 2018.
Obra de JR, da série 'Chronicles', que foi capa da revista Time em março de 2018.

Para já, trouxe consigo a Lisboa a carrinha Inside Out, onde as pessoas podem entrar e fotografar-se. Esteve estacionada à porta da galeria Underdogs, em Marvila, na passada sexta-feira, com o objetivo de reunir 250 fotografias de pessoas locais, que serão coladas em mural na cidade.

O projeto Inside Out, que retratou mais de meio milhão de pessoas em 14 anos de 153 países, é um dos projetos da fundação Can Art Change the World?, criada pelo artista depois de ter ganhado o TED Prize (que premeia ideias que podem mudar o mundo), em 2011. E o artista já terá resposta para a pergunta? “Ao longo dos anos vi o quanto os projetos podem ter impacto e criar mudanças. Acho que agora tenho a resposta, eu tenho visto, e tive a oportunidade de medir o impacto em comunidades”.

Carrinha do projeto 'Inside Out'.
Carrinha do projeto 'Inside Out'.D.R.

Um dos projetos da organização envolve levar a arte às prisões. E nasceu de um trabalho que o artista desenvolveu na prisão de alta segurança norte-americana de Tehachapi, que deu também origem a um documentário com o mesmo nome - outra vertente do trabalho de JR, sendo que um dos seus filmes, Faces, Places (2017), feito em parceria com a cineasta Agnès Varda, valeu-lhe uma nomeação para um Óscar.

“O projeto na prisão permite realmente medir como isso impactou as pessoas, como mudou a prisão, como libertou muitas pessoas, como mudou a luz de um lugar, de uma comunidade. Este projeto que é recente e sobre o qual fizemos um filme para documentar o processo, foi um dos que nos ajudou provar como a arte pode mudar o mundo”, diz.

Todos os reclusos que estavam no nível quatro de segurança passaram para o nível três, explica JR. “Eles fecharam o nível quatro agora. É uma experiência que está a ser estudada pelo governo californiano, porque era uma prisão que nunca tinha tido nenhum projeto de arte, nada. E, de repente, criar algo assim gerou uma onda de impacto e agora vai-se lá e há pinturas em todo lado, há projetos de arte e tem tantos programas. Tem sido realmente incrível ver o impacto da arte em lugares como esse”.

Trabalho no pátio da prisão de alta segurança de Tehachapi, na Califórnia (2019).
Trabalho no pátio da prisão de alta segurança de Tehachapi, na Califórnia (2019).D,R.

Sobre como vê o mundo atual, diz que “como artistas temos que permanecer os otimistas, os utópicos. Agnès Varda repetia-me isso muitas vezes. Portanto, não importa o que está a acontecer à volta, é preciso continuar a caminhar em direção à luz, mesmo nos momentos mais escuros. Essa é uma grande responsabilidade que temos agora”.

O artista não pára, tem a agenda cheia. De Lisboa parte para Kyoto e, em maio, estará em Nápoles para cobrir a Catedral de Nápoles, projetos “que envolvem milhares de histórias de pessoas em toda a cidade”. Em junho estará em Montpellier, com uma intervenção na igreja Carré-Saint-Anne, onde diz que reuniu “milhares de mãos de pessoas de toda a região e coloquei-as nesta catedral, é uma instalação totalmente imersiva”.

Mas JR está também empenhado num projeto no centro de Paris, que descreve como um dos maiores da sua carreira. “É uma homenagem a Cristo e a Jean-Claude que embrulharam a Pont-Neuf há 40 anos. Estou a trabalhar num dos projetos mais ambiciosos da minha vida. Estou a tentar fazer isso para depois do verão, talvez no outono. Todo o meu tempo e energia estão lá para tentar fazer talvez a maior instalação imersiva do mundo, em Paris, na Pont-Neuf. É um projeto que vai envolver milhões de pessoas”.

O projeto será na linha do que o artista fez no ano passado na Ópera de Paris, onde criou uma gruta gigante que cobre o edifício, num trabalho de ilusão de ótica (trompe-l’oeil) da série Regresso à caverna, mas com uma diferença.

“Criámos uma caverna onde se pode entrar fisicamente. Por mais de 100 metros será possível entrar numa caverna gigante e atravessar Paris. É mudar totalmente a perspetiva de um lugar que conhecemos, que foi o que Cristo e Jean-Claude fizeram quando embrulharam a Pont-Neuf em 1985. Muitas pessoas participaram nos meus projetos por estarem presentes, agora a ideia foi criar uma estrutura onde pudessem entrar”.

E o que podem os visitantes ver no interior? “Essa é a surpresa, é nisso que estou a trabalhar neste momento”.

Ópera de Paris coberta (2023).
Ópera de Paris coberta (2023).D.R.
JR, artista plástico francês.
A arquitetura como “ferramenta de pensamento sobre o estado das coisas”

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