A arquitetura como “ferramenta de pensamento sobre o estado das coisas”
No Centro Cultural de Belém (CCB) há um espaço chamado Garagem Sul onde funciona o Centro de Arquitetura que reabre hoje, após um ano fechado, com uma curadora-chefe e uma nova exposição. Mas se for lá não fique à espera de ver desenhos ou maquetes de edifícios, porque não é isso que vai encontrar.
“A Garagem Sul é um espaço experimental onde se fala de grandes questões contemporâneas através da arquitetura. A arquitetura não é só um espaço construído, é uma disciplina, uma forma de pensar”, diz ao DN Mariana Pestana, a arquiteta e investigadora responsável pela programação do Centro de Arquitetura. “Por exemplo, nos tempos que correm, a capacidade da arquitetura de pensar a várias escalas, da micro à macro, é muito importante, serve-nos também como ferramenta de pensamento sobre o estado das coisas, não só como uma solução construtiva”, sublinha.
Por isso, além de exposições, o Centro de Arquitetura acolhe residências artísticas e atribui bolsas de criação que foram ontem anunciadas. O espaço da Garagem Sul foi redesenhado e tem uma “zona formal de exposição ao centro e um espaço de trabalho para residências, com projetos em desenvolvimento”, explica Mariana Pestana. Tem também uma bancada numa das paredes que atravessa a sala de uma ponta a outra, para ser usada para múltiplos fins. O espaço foi desenhado pelo atelier de arquitetura suíço-português BUREAU, e 80% dos materiais usados, como as madeiras e as cortinas, foram reciclados de exposições anteriores. “Esta cenografia será para dois anos, e as exposições vão variando”, explica a curadora.
A exposição inaugural nesta reabertura do centro intitula-se Interespécies e remete para a ideia de que vivemos em interdependência com outros seres da qual depende também a nossa sobrevivência, explica a curadora. “Sabemos hoje que a nossa vida não está dissociada dessas múltiplas vidas que compõem os ecossistemas. A ideia é, no fundo, fazer uma arquitetura para ecossistemas”, diz Mariana Pestana. “Qualquer escolha de material tem sempre um impacto mais amplo, propusemo-nos pensar sobre isso. É uma arquitetura que projeta para essa interdependência, tem um papel relacional”.
A curadora trabalhou com uma equipa composta por Anna Bertmark, Fernanda Costa, Valentina Demarchi, Bernardo Gaeiras, Mathilde Goiun, Katerina Iglezaki, Carlos Pastor e Mariana Simões. “São investigadores que estão a desenvolver doutoramentos no Instituto Superior Técnico e cujo trabalho tem a ver com design e arquitetura mais que humano”, explica.
“Criaram-se uma série de oficinas de pensamento com este grupo através das quais se chegou à narrativa que é a exposição”. O desafio lançado aos investigadores foi encontrar “evidência material” dessas conexões entre lugares, pessoas, animais, plantas e minerais.
O resultado é esta exposição que se divide em três segmentos - aproximar, coabitar e conspirar - e mistura curiosidades, arte e ciência, mais ao estilo das exposições do século XIX, um “período de muita curiosidade pelo mundo natural”. “Eu trabalhei no Museu Victoria e Albert [em Londres] e, na altura, estudei muito a primeira grande exposição, sempre me impressionou muito esse período em que se mostravam estas coisas juntas, não havia uma separação entre o que é uma exposição de ciência ou o que é uma exposição de artes visuais, mas procurava-se tirar o pulso de um certo tempo”.
Assim, no percurso expositivo veem-se obras tão diversas como materiais de construção, cartografias, videojogos, fotografias, livros, vídeos ou sons. Numa das das salas está um exemplo de cocriação entre humanos e pássaros.
Bernardo Gaeiras explica que nas Ilhas Selvagens os vigilantes da natureza constroem abrigos com pedras para as cagarras procriarem. Durante a nidificação, os machos vão oferecendo pedras às fêmeas criando com elas uma espécie de tapete de entrada no abrigo.
A Fala das Cabras e dos Pastores, de Alexandre Delmar, é um projeto que investiga e faz um mapeamento da linguagem usada entre pastores e os seus animais, em várias zonas do país, em que às vezes os sons dos pastores se assemelham ao canto de pássaros. Também se podem ver tijolos modulares em barro criados pela startup Rreeef, que juntou ciência, design e engenharia para criar um produto que é utilizado para reconstruir corais degradados. Em Inglaterra, os morcegos são animais protegidos e foram concebidas umas telhas que além de protegerem contra o calor permitem aos morcegos pontos de acesso específicos nos telhados.
A exposição termina com máscaras de animais usadas nos protestos contra as minas de lítio em Montalegre. “A proposta desta arquitetura interespécies não segue a linha do capitalismo extrativista, mas procura encontrar nas sombras daquilo que foi o projeto industrializado moderno e do projeto de capitalismo-realismo em que vivemos hoje, evidências de outras maneiras de viver. Vivemos num pluriverso, sabemos hoje, há muitos mundos dentro do nosso mundo, há um que é o dominante e parece inevitável, essa narrativa de progresso e desenvolvimento capitalista, e nós esquecemos por vezes até de o questionar”, defende Mariana Pestana.
Residências artísticas
No Centro de Arquitetura há também dois estúdios em residência. O projeto Fish Cube está a ser desenvolvido pelo Superflex & KWY Studio e explora a ideia de o ser humano começar a construir tendo em conta as necessidades e preferências de outras espécies. A investigação mostra, por exemplo, que os peixes não gostam de ângulos retos. E num cenário em que o nível do mar sobe, deveriam os edifícios facilitar a vida às criaturas marinhas? Esta equipa já desenvolveu um cubo que através de uma técnica inovadora de corte permite uma desmontagem que resulta numa peça escultórica que pode ser arte para os humanos e um abrigo para os peixes.
Também em residência está o estúdio Ossidiana, que construiu The Field Table, uma mesa em terrazzo que abre espaço ao convívio entre humanos e pássaros. Nesta mesa há nichos para comida e água, um poleiro alto e outros módulos amovíveis que convidam ao jogo.
Estas residências vão resultar em duas instalações site-specific no CCB, uma no Jardim das Oliveiras e outra no Jardim da Água, a inaugurar no dia 28 de junho.
Em torno de árvores centenárias e pombos
As Bolsas de Criação Diogo Seixas Lopes, criadas em homenagem ao arquiteto que foi o primeiro consultor da Garagem Sul e que morreu em 2016, foram atribuídas aos projetos Raízes e Rotas, do atelier de arquitetura Frame Coletivo, e Columbia Livia sp.Domestica: Agente Crítico de Descodificação de Políticas Espaciais do coletivo Field, que junta uma equipa multidisciplinar nas áreas da arquitetura, cenografia, arte e design.
O Raízes e Rota é um projeto centrado nas árvores centenárias de Lisboa que criará “uma instalação artística e de caminhadas de ressignificação da paisagem arbórea urbana”. Propõe uma leitura “decolonial”, pondo fim a “narrativas exotificantes”, abordando “a exploração das espécies trazidas de diferentes geografias ocupadas”.
Para o coletivo Field, a relação entre humanos e pombos sempre foi ambivalente, oscilando entre “a veneração e a marginalização”, e propõe um projeto que “mapeia e ativa ligações transterritoriais entre áreas periféricas rurais e centros urbanos, repensando a interação entre humanos e columbídeos”.