João Pedro Rodrigues, um príncipe a brincar com o fogo
Um dos contingentes mais importantes e significativos do cinema português em Cannes nos últimos anos. 2022 é um ano de afirmação internacional do cinema nacional e a presença de alguns títulos com marca nacional no maior festival do cinema poderá querer dizer algo. Primeiro de tudo que há um respeito pelos nossos autores e pela maneira autoral e livre de uma política de cinema. Depois, também importante, uma mistura de diversas gerações que em muitos casos não se tocam, a prova que o cinema português são muitos cinemas. Por exemplo, Fogo-Fátuo, de João Pedro Rodrigues, na Quinzena dos Realizadores é de uma outra escola ou universo de Mistida, curtas-metragem de Falcão Nhaga, presente na Cinéfondation, montra para jovens cineastas em contexto de escola de cinema.
O caso de Mistida não deixa de ser um farol para uma promessa de um novo caminho. Neste caso, contar histórias por dentro de uma comunidade com uma pertença que é rara, neste caso por provir de um real que é caro ao realizador. Mistida é maioritariamente falado em crioulo da Guiné Bissau e é uma viagem a pé de uma mãe e de um filho de compras na mão num bairro de periferia de Lisboa. Pelo caminho, o filho, agora professor, cruza-se com imagens de uma infância onde se lembra de ouvir "vão-se embora pretos, voltem para a sua terra". Mistida são trinta minutos de cumplicidade serena de mãe e filho. Tem tanto carinho como ressentimento mas são os seus processos simples que tornam tudo tocante. Vem com a marca da Escola Superior de Cinema e vai colocar Nhaga no mapa, é a coisa mais positiva da Cinéfondation, mesmo se pensarmos que há bem pouco tempo na sua estreia mundial no Indie o filme tenha acabado por vencer o Grande Prémio da curta-metragem.
Quanto a Fogo-Fátuo, de João Pedro Rodrigues, é garantidamente um dos grandes filmes da Quinzena. Cinema de fantasia com ADN musical, capaz de misturar Amália e Carlos Paião, e um humor insolente que desconstrói cânones da perversão em cinema. É a história de um herdeiro ao trono português que descobre uma vocação: quer ser bombeiro. No quartel, o príncipe vai perceber o quão duro é o quotidiano de um soldado da paz, mas vai ter em Afonso uma espécie de anjo da guarda. Rodrigues continua a oferecer composição de planos com diálogos com a pintura e a filmar o desejo masculino com um prazer raro, embora aqui as possibilidades de uma identidade de desbunda futurista remeta para um cruzamento bastardo do Teatro Praga (são potentes as presenças de Joana Barrios e Cláudia Jardim) com o que é mais insano no cinema de Gabriel Abrantes. Acima de tudo, um filme para abanar o conforto dos limites do humor lusitano.
Na seleção oficial, expectativas elevadas para o sucessor de A Herdade. Restos do Vento, de Tiago Guedes, tem estreia mundial numa sessão especial com direito a passadeira vermelha, local onde devem estar Albano Jerónimo e Nuno Lopes, os atores mais internacionais do momento. Regresso auspicioso de Paulo Branco ao festival de Thierry Frémaux. Na competição, Joaquim Sapinho é outro produtor feliz, leva à escadaria Tourment sur Les Îles, de Albert Serra, ainda não há muito a ser ultimado.
Impossível também não destacar outra curta belíssima, Ice Merchants, de João Gonzalez, provavelmente um marco no cinema de animação feito por um português, programado na Semana da Crítica.
Destaque ainda para duas co-produções, Alma Viva, de Cristéle Alves, com passagem na Semana da Crítica, e Tout le Monde Aime Jeanne, de Céline Devaux, também na mesma secção. Ambos são filmados em Portugal e com atores nacionais.
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