Nesta entrevista, uma Jessica Chastain muito lúcida e franca.
Nesta entrevista, uma Jessica Chastain muito lúcida e franca.ANDER GILLENEA / AFP

Jessica Chastain: “Memória deixou-me marcas no corpo”

Estreia quinta-feira mais um Michel Franco, mais uma vez em língua inglesa: 'Memória', drama forte sobre um romance entre uma mulher e um doente de Alzheimer. O DN esteve com a sua estrela, Jessica Chastain, de novo fulgurante e em modo de underacting.
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A minha identidade neste filme foi encontrada através da fluidez.” Fluidez, palavra que descreve o filme do mexicano Michel Franco Memória, o projeto que Jessica Chastain escolheu logo a seguir  a ter obtido o Óscar em Os Olhos de Tammy Faye, de Michael Showalter. As palavras são da atriz num encontro com a imprensa no Festival de San Sebastián, logo a seguir à apresentação em Veneza, em competição, e onde o seu colega Peter Sarsgaard venceu o prémio de interpretação, a Taça Volpi.

Mas Memory não é apenas um filme de atores, trata-se de um drama tenso sobre como a memória é o vaso comunicante da nossa humanidade mais íntima. Jessica Chastain é uma cuidadora num centro de dia, mãe solteira com uma vida complicada em Nova Iorque. Depois de uma reunião com os alcoólicos anónimos  desenvolve um relacionamento com um intrigante homem que a segue. Mais tarde percebe que ele é um doente de Alzheimer. E ainda mais tarde entre eles forma-se uma aliança romântica destinada a quebrar tabus.

Continua a falar de fluidez: “Nunca gosto de projetar uma imagem que indique aquilo que sou ou o que vou ser. Não quero também nunca dizer se isto ou aquilo é certo. Quero autorizar-me a ser móvel e a poder estar sempre a aprender. Tenho de estar aberta para poder ser criativa. É claro que tenho linhas identitárias ao longo destes anos, mas dei-me sempre  permissão a poder mudar. Poder ter essa liberdade ajuda a minha vida e beneficia o meu trabalho.”

Mais uma vez temos uma Jessica Chastain a dar tudo, uma interpretação na qual se sente um investimento emocional arrasador. Ela e Peter Sarsgaard ligam de uma maneira quase mágica, não precisam de muito para produzir uma faísca humaníssima. É uma osmose de tons que raramente acontece, e é aí que se prova que Franco filma os atores de forma diferente. Veja-se a frieza com que aparece em Crepúsculo Tim Roth ou a precisão do mesmo em Chronic, ainda hoje o melhor momento de Franco. São atores à beira  de uma dimensão transcendental num registo intimista, em que o alívio do humor e a força trágica de uma lágrima coexistem seguramente. 

Confissões do processo

Quando lhe perguntamos o que mais gosta no seu processo, faz uma pausa breve e olha olhos nos olhos: “Gosto imenso de pensar naquilo que vai dentro da personagem e aquilo que passa para fora. São coisas diferentes, com energias distantes, tal e qual um pato que à distância parece suave mas se virmos as suas patas, em baixo, está em alta atividade. O meu segredo é ter algo que nunca mostro cá para fora. Por exemplo, em Os Olhos de Tammy Faye interpreto uma mulher que mostrava muito ao mundo, sobretudo para desviar as atenções, mas aqui, nesta personagem, temos uma mulher que quer permanecer invisível, alguém que quer desaparecer por completo.” Depois continua dizendo que ficou muito lisonjeada por saber que Michel Franco queria trabalhar consigo: “A minha agente sabe que tenho um fraco por cinema internacional e depois de vencer o Óscar era num projeto destes que tinha de estar.  Muitas vezes, ao fazer aqueles filmes maiores, sinto que o ordenado é para compensar não podermos ser tão criativos…Somos pagos para esperar numa rulote até alguém nos chamar para irmos para o plateau. Com o Michel Franco era mais como se estivesse a fazer teatro, senti que todas as minhas facetas eram necessárias. Entretanto já fizemos mais um outro e espero que tenhamos pela frente uma longa viagem.” 

Uma atriz fica outra depois disto

Poder-se-ia pensar que um papel tão pesadão deixe marcas. A atriz explica como volta à sua vida normal: “Eu consigo ter depois uma vida como antes, mesmo que não seja fácil estalar os dedos e ficar tudo OK. Neste fiquei com marcas no meu corpo, como se aquilo que a personagem sofreu passasse para mim. Ou seja, essas dores tornam-se memória. À medida que avanço na carreira, lembro-me de certas personagens e não vejo nenhuma separação da minha vida pessoal  - sinto que essas memórias das personagens pertencem agora à minha vida, tornam-se no meu tecido.” Como uma cicatriz? retorquimos: “Espero que seja algo mais bonito do que isso! São coisas que me fazem ficar mais perto de pessoas que tiveram experiências que eu não tive. Talvez fique mais perto da humanidade. Não são cicatrizes, não senhora, são laços invisíveis…Por outro lado, quando se perde esses laços sofre-se muito.  Tudo isto para dizer que mantenho sempre ligações com as minhas personagens do passado.”

E nessa ordem da sinceridade a atriz não deixa dúvidas: “Claro que é mais difícil interpretar pessoas cuja vida esteja repleta de dor. No caso de Memória o material é bom, porque é mesmo profundo, daí conter tanta dor.” 

Comparação com Malick

Esta ligação com Michel Franco não acontece por acaso. A atriz que foi descoberta por Terrence Malick em Á Arvore da Vida julga que são cineastas parecidos: “É verdade! Aqui, ao trabalhar com atores não profissionais, pensei muito nas crianças d’A Árvore da Vida. Cria-se uma relação com eles que passa muito pela realidade. Com aquelas crianças senti mesmo que era a mãe delas. Aqui, aquelas pessoas que vemos na reunião dos alcoólicos anónimos são mesmo pessoas que frequentam aquele lugar. Um ator chega ali e fica com medo de ficar idiota a fingir que é alguém alcoólico em estado de sobriedade. Senti uma obrigação de pertencer legitimamente àquele grupo. Não quis parecer uma atriz quando todos os outros são reais. E claro que as pessoas do centro de dia são reais também, eu trabalhei de facto lá,  vestindo-os, dando-lhes de comer, medicando-os, enfim, a construir relações. É óbvio que acabamos por improvisar dentro dos parâmetros do argumento. Se a personagem estiver bem construída, pode estar em todas essas situações, basta viver o momento. Para mim foi muito bonito não ter de lidar com as luzes da direção de fotografia e uma equipa técnica demasiado numerosa. Neste filme senti realmente que estava a viver. É por isso que Memória é tão intenso.” 

Passar despercebida na multidão

No fim, confessa que esta estada em San Sebastián, cidade que ama, é especial: “Desta vez fiquei mais dias para aproveitar. Antes vinha e era só na véspera, depois apresentava o filme e já tinha que me ir embora. Foi incrível ter tempo para ir ao museu do Balenciaga e a Bilbau, ao Museu Guggenheim. Aqui em San Sebastián fiquei muito impressionada com os artistas de rua - nunca tinha visto algo assim!”

Estas palavras encerram uma dúvida:  conseguirá andar à vontade nas ruas sem ser engolida pelas multidões!? “Depende sempre da maneira como te apresentas. Muitas vezes depende da maneira como me visto. Na rodagem em Nova Iorque do Memória consegui passar meio despercebida. Mas o pior é quando surgem os paparazzi. Nessas ocasiões há que saber gerir a coisa… Muitas vezes dirijo-me a eles e peço para se irem embora depois de já terem uma fotografia. Descobri que essa tática costuma resultar. É uma forma de apelar à empatia e humanidade de cada um deles. Se os trato como seres humanos, pode ser que me tratem da mesma maneira. Nova Iorque, para filmar, é um local espantoso: as pessoas compreendem que estamos a trabalhar e deixam-nos em paz.”

A explosão Peter Sarsgaard

Neste drama físico e psicológico Jessica Chastain está ao seu melhor nível, provando que é das maiores atrizes da sua geração, mas o filme é de Peter Sarsgaard, que em Veneza venceu a Taça Volpi para melhor interpretação. É o papel da vida de um ator mais adorado pelos pares do que propriamente pelo grande público. Uma verdadeira explosão para um talento enorme, muitas vezes injustamente atirado para papéis secundários.

Se houvesse justiça e dinheiro para lobby, esta sua interpretação poderia estar na corrida da próxima temporada dos prémios. Eis um ator capaz de dosear emoção e naturalismo com uma tranquilidade desarmante, ainda para mais na pele de um homem a sofrer da doença de Alzheimer. Uma abordagem sem clichés, sempre muito perto de uma faísca de autenticidade genuína feita de pequenos nadas. Dir-se-ia que o que acontece aqui já vinha sendo esperado com o que tinha feito em Blue Jasmine, de Woody Allen, ou em Lovelace, de Rob Epstein e Jeffrey Friedman. Ou ainda em memoráveis presenças em À Margem de Um Crime, de Bertrand Tavernier, ou, mais recentemente, em A Filha Perdida, da sua mulher, Maggie Gyllenhaal.

Por estes dias está também na mira do mundo com um papel na série Presumível Inocente, da Apple TV+, ao lado do cunhado, Jake Gyllenhaal. Era bom não se deixar cair na máquina de Hollywood como vilão de serviço. Para o ano voltamos a vê-lo em The Bride, de novo sob as ordens da sua senhora e igualmente ao lado do cunhado numa variação d’A Noiva de Frankenstein.

Com uma promoção débil, mais um filme estreado sem critério…

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