Jean-Paul Belmondo. Morreu um ator de muitos sonhos e aventuras

Nome emblemático da Nova Vaga francesa, na sua carreira de muitos contrastes foi ator e produtor, vedeta de cinema e homem de teatro - Jean-Paul Belmondo faleceu aos 88 anos.
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Na sequência de abertura de O Acossado (1959), de Jean-Luc Godard, Jean-Paul Belmondo quebra um tabu clássico e fala para a câmara, dizendo: "Se não gosta do mar, se não gosta da montanha, se não gosta da cidade... vá-se lixar" (numa tradução de prudente brandura). Perante a notícia da sua morte, talvez possamos defini-lo como esse ator que podia dirigir-se diretamente ao espectador, eventualmente provocando-o, sem que isso anulasse o seu capital de sedução e simpatia. Com a saúde muito debilitada desde que sofrera um AVC em 2001, faleceu ontem na sua casa de Paris - contava 88 anos.

Começou nos palcos, em 1953, mas é um facto que O Acossado ficou como uma espécie de passaporte de toda a sua carreira: a sua performance em tom de Humphrey Bogart, ao mesmo tempo desencantada e picaresca, resumia um filme-bandeira da Nova Vaga francesa. No tempo breve, mas fulgurante, desse movimento que simbolizou como nenhum outro a modernidade cinematográfica, Belmondo foi um dos rostos centrais do universo romanesco e experimental de Godard, contracenando com Anna Karina em Uma Mulher É uma Mulher (1961), revisitação festiva do género musical, e Pedro, o Louco (1965), símbolo dessa modernidade em que se cruzam a nostalgia de um tempo épico, marcado pelo valor universal da literatura, e a corrupção das relações humanas favorecida pela sociedade de consumo.

Nesse período, podemos encontrá-lo numa invulgar multiplicidade de registos dramáticos, sob a direção de cineastas como Claude Chabrol, em Pedido de Divórcio (1959), Peter Brook, em Moderato Cantabile (1960), escrito por Marguerite Duras, ou Jean-Pierre Melville, em Amor Proibido (1961) e O Denunciante (1962). Paralelamente, Belmondo ia surgindo em títulos bem diferentes, mais ligados à linha da frente da indústria, como Cartouche (1962), de Philippe de Broca, ou Caça ao Homem (1964), contracenando, respetivamente, com Claudia Cardinale e Françoise Dorléac.

O ziguezague entre o chamado "filme de autor" e os produtos mais conservadores do mercado acabou por definir, para o melhor e para o pior, a dinâmica da sua carreira. Em 1969, por exemplo, encontramo-lo em dois títulos que não poderiam ser mais diferentes: O Cérebro, contracenando com Bourvil, uma das melhores comédias assinadas por um especialista da época, Gérard Oury, e o sublime A Sereia do Mississipi, de François Truffaut, com Catherine Deneuve, epopeia romântica que talvez possamos considerar como o filme que, simbolicamente, encerra o ciclo afetivo da Nova Vaga.

Porventura consciente dessa "duplicidade" artística, no começo da década de 70, Belmondo decidiu formar a sua própria companhia de produção. O objetivo era muito claro: gerar projetos que lhe permitissem gerir a sua própria imagem, preservando a sua condição de um dos atores mais populares do cinema francês (mesmo além fronteiras). O exemplo de Alain Delon terá servido de modelo, já que ambos protagonizaram esse gigantesco sucesso que foi Borsalino (1970), história de gangsters dirigida por Jacques Deray que o próprio Delon produziu.

O balanço como produtor é, no mínimo, paradoxal. Começou com um enorme sucesso: A Casa dos Desejos (1972), de Claude Chabrol, em que contracenava com Mia Farrow e Laura Antonelli (na altura, sua companheira). E incluiu o magnífico Stavisky (1974), de Alain Resnais, evocando um escândalo financeiro na França de entre os dois conflitos mundiais. O certo é que prevaleceram os "veículos" mais ou menos convencionais em que Belmondo ia protagonizando variações sobre a sua imagem compulsiva de herói, contracenando com algumas das atrizes mais populares da época. São exemplos desse período O Magnífico (1973), com Jacqueline Bisset, O Belo Animal (1977), com Raquel Welch, e O Ás dos Ases (1982), com Marie-France Pisier.

Ganhou um César de melhor ator com Itinerário de uma Vida (1988), de Claude Lelouch. Como outros nomes da sua geração, a partir de finais dos anos 80 a sua presença no cinema foi-se tornando mais irregular. Por essa altura regressou ao teatro, tendo obtido um grande sucesso, em 1990, com Cyrano de Bergerac, um dos seus papéis preferidos. Nos seus melhores momentos, foi um ator capaz de nos tocar através das emoções mais secretas, dando corpo a uma máxima "shakespeareana" reescrita por Godard, em Pedro, o Louco, e dita por Belmondo com invulgar contenção: "Nós somos feitos de sonhos e os sonhos são feitos de nós."

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