Jafar Panahi assina um dos grandes filmes de Cannes
O americano Wes Anderson reapareceu na secção competitiva de Cannes com The Phoenician Scheme (a estrear nos ecrãs portugueses já na próxima semana, com o título O Esquema Fenício). E há uma pergunta que surge: fará sentido ele ter o seu “lugar cativo” no alinhamento do festival, deixando de fora alguns títulos que, pela sua originalidade temática e estética, talvez merecessem maior atenção?
Em boa verdade, essa é uma questão secundária, quanto mais não seja porque o festival tem toda a legitimidade para dar a visibilidade que entender a um filme ou a um autor. O problema é de outra natureza: Wes Anderson parece ter entrado num território de banal academismo que, afinal, ele próprio criou. Desta vez, trata-se de fazer o retrato de um riquíssimo homem de negócios cujos projetos enfrentam as mais diversas contrariedades criadas por outros magnatas, assassinos contratados e até um grupo terrorista... Fica-se com a sensação de que a história contada é o que menos interessa o realizador, de tal modo o filme se esgota numa colagem de vinhetas de banda desenhada, vistosas sem dúvida, mas que têm a vida de uma instalação que ficou esquecida na arrumação de um museu. O elenco é de luxo — Benicio Del Toro (no papel central), Tom Hanks, Scarlett Johansson, etc. —, mas não se pode pedir aos intérpretes que salvem um projeto que se vai esgotando no seu monótono decorativismo.
Dito isto, convém contrapor que a terça-feira “cannoise” revelou dois dos filmes maiores desta 78ª edição do festival: Un Simple Accident e Fuori, assinados pelo iraniano Jafar Panahi e o italiano Mario Martone, respectivamente. São também, afinal, dois cineastas queridos do festival, ambos com várias presenças desde 1995, ano em que a primeira longa-metragem de Panahi, O Balão Branco, lhe valeu a Câmara de Ouro, enquanto Martone apresentava L’Amore Molesto (entre nós estreado como Vítima e Carrasco).
Os filmes de Panahi têm funcionado também como ecos, directos ou simbólicos, das limitações impostas ao seu trabalho pelas autoridades iranianas. Um dos seus filmes mais emblemáticos, ironicamente intitulado Isto Não É um Filme (2011), foi mesmo rodado (e apresentado em Cannes) quando Panahi estava em prisão domiciliária.
O “simples acidente” a que se refere o título francês do novo filme (a versão inglesa é It Was Just an Accident) ocorre quando um casal, com a sua filha, se desloca de carro, chocando com um cão... Quando estão a tentar resolver os danos provocados no carro, o homem (que é também o condutor) é visto por um outro homem que, estranhamente, se esconde. Que está a acontecer? Pois bem, ele terá reconhecido aquele que o torturou na prisão... Escusado será dizer que as derivações políticas da intriga são intensas e perturbantes, mas são-no tanto mais quanto Panahi mantém a sua encenação num tom de austero realismo que, momemnto a momento, multiplica as sugestões de violência (física ou anímica) — no limite, estamos perante um prodigioso conto moral sobre as contradições da dimensão humana.
A arte da alegria
Talvez possamos dizer algo de semelhante a propósito dos factos tratados em Fuori, embora Martone trabalhe sobre memórias de uma personagem muito concreta. A saber: a escritora italiana Goliarda Sapienza (1924-1996), autora dessa obra-prima da moderna literatura italiana (e europeia) que é A Arte da Alegria.
João Lopes, em Cannes
A escrita desse romance constitui, por assim dizer, o pano de fundo literário e também o fantasma existencial do filme de Martone, até porque A Arte da Alegria só teve a sua primeira edição italiana em 2008, doze anos passados sobre a morte da autora. Sapienza viveu os anos em que tentou encontrar um editor no meio de um turbilhão de acontecimentos, incluindo a sua proximidade com alguns grupos políticos extremistas, que a levaram mesmo a ser condenada e a cumprir um período de prisão. Daí que o núcleo dramático do filme sejam os laços que estabelece com outras mulheres prisioneiras, numa saga ingtimista comandada por um angustiado desejo de libertação e liberdade.
Vale a pena formular uma hipótese e lembrar uma coincidência. Assim, no papel de Sapienza, não tenhamos dúvidas que Valeria Golino é uma forte candidata ao prémio de interpretação feminina. Entretanto, convém lembrar que, recentemente, com tradução de Simonetta Neto e chancela das Publicações Dom Quixote, A Arte da Alegria voltou a estar disponível no mercado português.