Romance sobre o "casamento sem homem" que abalou Espanha

<em>Amantes de Buenos Aires </em>recria a história verdadeira de duas professoras que se casaram em 1901. Só em 2005 é que o casamento entre mulheres foi autorizado em Espanha e o primeiro realizou-se há exatamente 14 anos.
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Legalmente, só em 2005 é que se realizou o primeiro casamento homossexual entre mulheres em Espanha, mas em 1901 houve uma cerimónia oficial numa igreja da Galiza em que duas mulheres se casaram. Chamavam-se Elisa e Marcela, e o casamento proibido pela lei de então tornou-se um escândalo quando foi descoberto.

Ao sexto romance, o autor Alberto S. Santos teve conhecimento desse "caso" e decidiu recriá-lo em Amantes de Buenos Aires. "Como acontece muitas vezes, a história surgiu por acaso numa conversa com amigos. Um deles falou de duas professoras que se tinham casado na Galiza, vieram para o Porto e acabaram por ir para Buenos Aires devido à grande confusão que o seu casamento provocou na época", recorda.

Depois dessa conversa, Alberto S. Santos foi à procura da história de Elisa e Marcela: "Senti urgência em escrever essa história, que causou muito estranhamento junto da população espanhola depois de lerem tudo o que os jornais relataram."

O autor não precisou de inventar uma história na totalidade pois, explica, "bastavam os factos verdadeiros do que ocorreu em 1901 para ser interessante", a que acresce "ter acontecido numa Galiza rural, onde era normal que duas professoras vivessem numa mesma casa, principalmente se já se conheciam há mais de uma década". No entanto, a história adensa-se: "Uma delas ficou grávida e tudo se precipitou."

Em Amantes de Buenos Aires é contada toda a "confusão" que se seguiu à união oficial de duas mulheres: "Casaram pela igreja com direito a todo o cerimonial católico. Uma delas conseguiu um documento em que surgia batizada com um nome de homem, passado 15 dias conseguiu convencer o padre da Corunha a casá-las numa cerimónia que contou com padrinhos e convidados."

"Tudo correria na perfeição não fora o facto de terem cometido um lapso, o de voltarem à aldeia onde davam aulas e serem reconhecidas", conta Alberto S. Santos. O facto de a antiga professora Elisa ser agora Mário, vestida e de cabelo cortado à homem, deu nas vistas e a situação desencadeou um eco local: "Que rapidamente alastrou para um eco regional e acabou por ser conhecido a nível nacional, com todos os jornais de Espanha a reportar o casamento pela igreja entre duas mulheres."

Também em Portugal as duas mulheres foram notícia depois de fugirem para o Porto. Buenos Aires, aonde Alberto S. Santos se deslocou para recolher mais informações, foi o passo seguinte da fuga, capital mais nebulosa para a investigação realizada pelo autor: "Buenos Aires foi a parte mais difícil para encontrar novos elementos porque as fontes eram mais raras, mas tive acesso a uma investigação de um académico que confirmou o que precisava."

O título do jornal La Voz de Galicia fez uma ampla cobertura do "matrimónio sem homem", imprimindo na primeira página o retrato oficial do casamento com a seguinte legenda: "Aqui está a 'verdadeira prova de Elisa-Mario e de Marcela, apanhados de braço dado e acabadinhos de sair da igreja". A notícia pretendia "satisfazer a curiosidade de um sem número de pessoas que mostraram vontade de conhecer as fotografias de Elisa-Mario e Marcela através de infinitas cartas e manifestações verbais dos recém-casados".

As polémicas então publicadas foram muitas, como a de que "se insiste em dizer que Elisa dominava Marcela, mais ao provocar-lhe medo do que inspirando amor", elementos que Alberto S. Santos investigou para escrever o seu romance. A reconstituição das mentalidades da época "foi a parte mais difícil", mesmo que este seja o seu livro que se situa mais próximo da atualidade entre todos os romances históricos que publicou. Explica como se organizou: "Amantes de Buenos Aires tem três linhas narrativas: em 1901, a meio do século e a da atualidade. Esse é o grande exercício para fazer com que o leitor de hoje se interesse por uma história assim, daí que tenha ocupado mais tempo a procurar como montar a história e reunir elementos do que a escrevê-la."

Quanto à reprodução das mentalidades da época, Alberto S. Santos socorre-se do facto de ter nascido numa aldeia nos anos 1960: "Onde a mentalidade ainda era muito parecida com a destes tempos."

Quanto à temática do romance estar em cima dos acontecimentos mais recentes na sociedade (#Me Too, por exemplo), Alberto S. Santos não recusa que seja "uma história própria para estes tempos", mas logo afirma que "não foi de propósito". Considera que foi uma "coincidência" as temáticas, porque o livro surge por outra razão: "Não me quis sintonizar com este movimento sequer, apareceu-me um caso insólito e foi impossível resistir à história tão desafiadora de Elisa e Marcela".

O romance, refere, "evoluiu como eu queria e sem influências exteriores. Abstraí-me da atualidade e procurei entrar no sentimento destas duas professoras e refazer a época em que viveram. Uma Galiza rural, conservadora e impreparada para lidar com esse tipo de relacionamentos. O eco que teve em três comunidades, Galiza, Porto e Buenos Aires, prova a sua importância pois em cada um destes sítios foi sempre uma tragédia e uma situação insólita que gerou grandes repercussões e fez apaixonar, para o bem e para o mal, as pessoas da época."

No que respeita ao argumento que escolheu para Amantes de Buenos Aires, Alberto S. Santos teve de recriar várias situações que se continuam a desconhecer sobre o duo de mulheres: "Muitas vezes, imaginamos algo que mais tarde vem a ser verdade. Tinha uma forte intuição de que esse bebé de Marcela teria crescido, tido filhos e acreditei que pudesse haver um bisneto vivo. É a partir dos olhos dessa hipotética descendente que parti à procura da história familiar. Curiosamente, há poucas semanas, descobri que essa bisneta existe e que ela também se questiona sobre esse passado e tenta compreendê-lo. A personagem que eu criei, acabou por ganhar vida na realidade."

Amantes de Buenos Aires

Alberto S. Santos

Porto Editora

422 páginas

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