O órfão de 50 anos que faz chorar espanhóis

O escritor Manuel Vilas escreveu um romance em que a morte dos pais, o divórcio e o álcool são os protagonistas. Uma narrativa inesperada que emocionou os leitores de Espanha e tornou-se num sucesso literário inesperado.
Publicado a
Atualizado a

O escritor espanhol Manuel Vilas está na Póvoa de Varzim no encontro literário das Correntes d'Escritas para apresentar um dos romances que mais sucesso teve no seu país no ano passado. Nas 400 páginas intituladas Em Tudo Havia Beleza fez uma confissão necessária para ultrapassar os piores tempos da sua vida: a morte do pai e da mãe, do divórcio e da dependência do álcool.

Nem é necessário falar sobre esta última situação, pois Vilas faz questão de a referir e dar-lhe muita importância: "Beber é um inferno". Acrescenta logo o dia em que terminou com o vício: "9 de junho de 2014".

É um autor que critica o facto de Espanha e Portugal se darem menos importância do que deveriam enquanto países irmãos: "Sou um iberista". Desenvolve o seu pensamento: "A Península Ibérica é um todo cultural, com povos distintos e uma história e cultura comuns. Temos a mesma geografia e natureza". Aliás, publicou recentemente na sua coluna no jornal El Pais um artigo sobre as relações ibéricas, onde dizia que havia muito para fazer: "Esta é uma situação a que não se dá muita importância, no entanto os nossos desencontros históricos têm de ser corrigidos."

Apesar da distância entre os dois povos que se mantém, Manuel Vilas garante que "é um grande leitor do que se escreve em Portugal" e destaca Fernando Pessoa: "É um dos meus escritores importantes e o meu romance tem uma grande ligação ao Livro do Desassossego." Destaca outros autores: Saramago, Lobo Antunes, José Luís Peixoto e Gonçalo M. Tavares, mas acusa Espanha, Portugal, França e Itália de serem dominados por escritores norte-americanos como Philip Roth ou David Foster Wallace: "Estamos todos colonizados pelo gigante americano." Escapa à crítica o grande sucesso literário dos últimos tempos em Espanha, Pátria, de Fernando Aramburu, que vendeu um milhão de exemplares: "É um grande êxito, e dizem do meu que é um segundo Pátria!" Qual é o segredo, pergunta-se: "Falar das relações entre pai, mãe e os filhos. Falar da família."

Este romance tem comentários positivos de muitas dezenas de personalidades espanholas. Por que razão toda a gente quer dizer qualquer coisa sobre Em Tudo Havia Beleza?

Só há uma explicação, o romance toca o coração e provoca na pessoa que o lê o desejo de falar sobre o livro. É uma necessidade psicológica de relacionar o pai e a mãe do meu romance com os seus próprios pais, uma história que muitas vezes tem a ver com o próprio leitor e precisa de a exteriorizar. Sei que muitos leitores em Espanha choram quando o leem.

Já lhe disseram isso!

Sim, tenho ouvido histórias incríveis sobre esse choro de pessoas que se emocionam ao reverem-se no livro.

Era o objetivo quando o escreveu?

Não, só posso dizer que o sucesso do romance é um daqueles mistérios da literatura. Toda a vida escrevi e, de repente, tenho um livro de que todos gostam. Mais vale tarde que nunca, como se diz em Espanha...

O Livro do Desassossego é composto de fragmentos. O seu também?

É feito de forma parecida, pois o romance pretende seguir a memória do que recordo. O que aconteceu há três dias ou há quinze anos. A memória não aceita recordar o dia 15 de fevereiro de 1982 só porque se o quer e a narrativa funciona assim também.

Já disse que tem medo deste romance. Porquê?

Por ser autobiográfico e falar dos meus pais. Tinha medo porque era a história da minha família e, por exemplo, se o meu pai não tivesse morrido iria perguntar-me porque tinha contado isto tudo sobre eles. Também é um livro de fantasmas, porque todos os personagens já morreram.

Porque escreve um livro assim?

Escrevo o livro porque a minha mãe morreu, estava a divorciar-me e era alcoólico. Há cinco anos que não bebo.

A razão de dar início ao livro é muito pessoal então?

Sim, o divórcio, o problema de alcoolismo e a morte da minha mãe morre, tudo ao mesmo tempo, destroçou-me e a solução foi escrever.

Era a única solução?

Sim, escrever ou ir ao psiquiatra. Os leitores vão aos psiquiatras, os autores escrevem livros. Mas o mais importante que aconteceu foi ter deixado de beber a 9 de junho de 2014 e desde então nunca o ter voltado a fazer, tanto que a minha vida renasce com esta atitude,. O álcool é um inferno - estava os dias inteiros embriagado.

Poderia ter continuado a escrever poesia.

Sim, sou poeta, mas o meu desejo foi fundir a narrativa e a poesia.

A poesia não era uma forma de expressão suficiente?

Não, precisava de um romance para poder contar a minha história.

Foi um romance terapia?

Sim, uma terapia ou uma catarse, uma cura através da palavra. Falas da tua dor e curas-te como na psicoanálise.

Quando fala sobre a dor é com a verdade toda ou não foi fácil esclarecer tudo no papel?

Agora tenho 56 anos e este é o momento de dizer a verdade ou irá faltar tempo para o fazer. Este é um livro de alguém que viveu cinquenta anos e que não o poderia ter escrito com quarenta por lhe faltar experiência. Agora, que já tenho mais passado que futuro, havia muita vida para contar. Aliás, muita da minha vida já passou e foi muito importante ter consciência disso, de que a maior parte da minha vida já passou.

Se voltasse a escrever este livro contava as mesmas coisas ou censuraria algumas?

Estou a escrever uma segunda parte deste livro porque ficaram muitas coisas por contar. Não me atrevi a fazê-lo na primeira vez porque tinha medo. Os sentimentos não se inventam e assim é muito difícil fazer o relato de uma vida.

Teremos novidades mais dramáticas?

Sim...

Esta foi a forma de enfrentar o passado ou de encontrar o futuro?

Creio que aconteceram as duas coisas, mas principalmente queria enfrentar e organizar o passado pois só assim estaria em condições de viver o futuro. Sem ordenar o passado não é possível continuar a viver.

Os leitores espanhóis gostaram de ver um homem a confessar-se deste modo?

Essa foi uma grande surpresa porque não temos uma tradição na literatura deste género de livros; por influência da religião e por razões políticas um homem não conta a sua vida. Agora, contudo, começaram a surgir vários autores a escrever livros autobiográficos.

E também de autoficção?

Sim, mesmo que seja uma situação diferente porque na autoficção inventam-se coisas e eu não o fiz. Há uma diferença importante entre a autoficção e a autobiografia, é que a primeira é uma invenção e a segunda uma confissão.

Nunca se refugiou na autoficção?

Não, porque não me interessava. Ou contava a minha vida ou a inventava, o máximo que aceito é a existência de subjetividade, porque uma pessoa ao contar a sua vida fá-lo sobre a perspetiva do seu pensamento e visão.

A sua obra anterior foi eclipsada com este livro?

E verdade, ninguém quer saber dela. Este livro marcou-me e, até posso dizer, persegue-me.

Se os seus pais estivessem vivos teria escrito este livro?

Não, porque este é um livro que fala da morte e se eles estivessem vivos não haveria razão para o escrever.

É um relato para contar uma orfandade?

Exatamente: orfandade e desamparo. É a história de um órfão de 50 anos.

Se os seus filhos escreverem um livro assim qual será a sua reação?

Não me importarei porque há muito amor no romance. Escrevi-o porque gostava dos meus pais

Refere que a sua mãe tinha péssima memória. Não é o seu caso?

Não, as memórias vão surgindo conforme recordamos os momentos. Pode-se dizer que usar a memória é uma investigação.

Em Tudo Havia Beleza [Ordesa]

Manuel Vilas

Editora Alfaguara, 398 páginas

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt