"Nos últimos cinco anos o teatro é insultuoso para os espectadores"
Em vésperas do Dia Mundial do Teatro, Jorge Silva Melo explicou sete afirmações das milhares que deixou registadas entre as 407 páginas memorialistas que publicou recentemente sob o título A Mesa Está Posta. O encenador, cineasta, ator, autor, fuma sem parar e fala cadenciadamente sobre o fim do teatro enquanto o conheceu, desviando o olhar dos turistas que andam a explorar o Jardim Botânico e espreitam pela janela lateral do teatro para ver o que se passa ali dentro.
Estamos nos últimos dias dos preparativos para a peça que estreia hoje, Ballyturk, de Enda Walsh, pela companhia Artistas Unidos, no Teatro da Politécnica. A conversa começa com a pergunta porque pisca tanto o olho ao cinema neste livro. Responde: "A minha formação é o cinema. Estudei e comecei a fazê-lo antes do teatro e só na Faculdade de Letras é que me comecei a interessar pelo teatro, em 1967/1968, porque era a única forma de associação estudantil permitida na altura."
Mas são as sete afirmações já referidas que interessam. Estão neste livro que recolhe textos escritos desde 1972 até ao ano passado: "Uma espécie de compilação de escritos sobre teatro, montados, revistos e reescritos como uma cronologia da minha vida. A primeira parte é a adolescência, a segunda entrevistas de balanço de vida e, segue-se, o que penso sobre autores e atores."
Algumas respostas são longas e devem ler-se como se viessem de alguém que está no palco de um teatro, imaginando a marcação indicada ao ator.
Página 222: "Para que se faz teatro? O que é o teatro? A resposta já é uma só. E triste. Faz-se teatro agora porque tem de ser. Ninguém o deseja (a não ser alguns que o fazem). Mas fica mal a unm Estado não patrocinar uma noites de teatro." Porquê esta visão negativa do estado do Estado no teatro?
Pessimista, diria, e é a minha situação. Porque o Estado permite que haja teatro em condições cada vez mais fechadas para os espectadores, com espetáculos que fazem três/quatro récitas. É uma coisa inadmissível, porque é o mesmo que dizer "não venham cá", levar os empresários teatrais institucionais a não acreditarem nos espectáculos que só têm dois/três dias porque têm a certeza que os primos, os namorados e os irmãos irão ver mas não acreditam na capacidade de se tornarem acontecimentos. São pequenas festas entre amigos e é isso que tem acontecido lamentavelmente. Nos últimos cinco anos o teatro é insultuoso para os espectadores, pois estão-lhes a dizer 'Vocês não são da profissão e nós só estamos a trabalhar para os profissionais da profissão'. A maior parte dos teatros institucionais têm o seu público entre aspirantes a pessoas que fazem teatro e reformados de pessoas que fazem teatro, portanto são festas de primos em vez de abrangerem a sociedade. O teatro que eu pensei ser possível também em Portugal seria o teatro cívico, ou seja, para a sociedade numa cidade grande como foi Lisboa antes de ficar esvaziada. Qual é o lugar do teatro? Qual é o lugar das igrejas, em certo ponto o antecessor do teatro? As igrejas ainda têm fieis ou estão todos nas seitas nos arrabaldes de Lisboa? Como a cidade mudou, porque é que as pessoas hão de vir ao Rossio ou à Rua da Escola Politécnica se moram para lá de Mem Martins,. Nesses sítios onde as pessoas vão dormir quase não há teatro, o que também é assustador. Mesmo o Teatro da Malaposta, que serviu uma comunidade grande à volta de Loures e de Odivelas, quase não existe. As grandes instituições fecham as salas e promovem uma cultura de supermercado cultural: 'hoje, ofereço isto, amanhã aquilo, há desconto ao fim de semana'. Há muitos teatros no país, alguns até surpreendentemente bem equipados, mas a direção dessas salas ainda não está ligada à própria cidade e são muito dependentes das câmaras, sem autonomia e orçamento. Fizemos agora uma grande digressão com a peça Do Alto da Ponte do Arthur Miller desde setembro até ao fim de semana passada, por tudo o que é palco, mas tenho dúvidas se houve o encontro com os espectadores apesar de as salas estarem compostas. Foi intenso ou não?
Página 247: "Havia um teatro a ser escrito, fizémo-lo, inventámo-lo." Porque só refere um autor português numa lista de estrangeiros?
Demora mais tempo. O Harold Pinter já tinha escrito antes de começar as peças e o Jon Fosse também. Com os autores portugueses é preciso ter um horizonte. Tenho de lhes dizer: 'Quero que escrevas uma peça para estrear daqui a dois anos'. Só que nos últimos seis anos não sei o que faço no dia a seguir - a instabilidade inscreveu-se totalmente. Os apoios estatais diminuíram em cerca de 50% e são entregues em prestações impossíveis de cumprir e nem se sabe quando. Não consigo dizer a um jovem autor quero uma peça tua para daqui a cinco anos. Todos os teatros que conheço que inventam na escrita contemporânea - o grande modelo é o Royal Court Theatre em Londres - precisam de dois/três anos de horizonte e deitam fora 60% das peças que convidaram a escrever - mas pagam. Eu não tenho dinheiro para deitar fora assim. Tem tudo a ver com dinheiro e calendário, pois sem horizonte é impossível trabalhar. E estamos assim há meia dúzia de anos. O que acontece é que a maior parte dos espetáculos estão a ser feitos por jovens autores, atores e performers, e nem sempre os resultados são tão interessantes como eu gostaria. Mas são criados pelos próprios intérpretes que arriscam escrever! Os Possessos com o João Pedro Mamede é um caso nítido, mas há outros. No entanto, deixou de haver o escritor em casa, o que vai levar as peças para os atores representarem - essa figura desapareceu. Eu também fiz parte desse movimento com o António, Um Rapaz de Lisboa, ia criando e encenando e ainda não consegui senão uma vez que as minhas peças tenham sido feitas por outras pessoas. A Sala Vip foi representada, por exemplo, mas nenhuma delas foi reposta e um escritor só o começa a sê-lo quando é reposto e liberta-se do espetáculo original. Por isso há crise de repertório, porque o teatro que está a ser feito baseia-se em poucos atores: Tchekov, Tchekov, Shakespeare, Shakespeare, Tchekov, Shakespeare... São quase sempre as mesmas peças dos clássicos. O tempo não permite mais.
Página 252: "Já há demasiadas peças que servem o teatro que existe. Não é preciso continuar a fornecer mais, é parasitismo." Cita Heiner Müller mais de cem vezes neste livro...
É verdade, embora o Goldoni diga no século XVIII que tudo é suscetível de ser teatro. Desde então, houve demasiadas peças feitas. Muitas caíram no esquecimento, outras são redescobertas com sucesso, como as suas comédias finais. Mas pergunto, o que é que nós que vivemos numa censura de mais de 40 anos sabemos do teatro que nos precedeu? Estou a fazer Tennessee Williams, que nunca tinha sido feito, porque é indispensável conhecermos de onde viemos. Houve um teatro que foi inventado no pós-guerra e que não tivemos em Portugal. Eu pergunto no livro: é só porque tenho saudades da minha adolescência? De quando os descobri e da inocência que tinha? Quanto a Heiner Müller, é pela certa o maior autor da última parte do século XX. Fui amigo e trabalhei diretamente com ele, estreei mundialmente uma das suas últimas peças, é um autor sublime, provocatório, desesperado, um extraordinário escritor que meditou sobre a condição humana em Hamlet, o príncipe esclarecido que não é capaz de tomar uma decisão enquanto a história avança. Depois de Beckett é o grande autor.
Página 277: "Mal entrei n'A Capital em 1999 disse: é desta que vou fazer Albergue Noturno de Máximo Gorki." Não aconteceu porquê?
Não aconteceu, A Capital era um sítio abandonado e sujo, perfeito para se fazer essa peça. Pensámos nisso a trabalhar uma peça de Tchekov, que é muito próxima e aconteceu uma morte do ator principal, Paulo Claro, e não quisemos fazer as peças que eram para ele.
Página 333: "Fundei os Artistas Unidos (...). Com peças sobre o aqui e agora, ou outras do passado, explicitamente políticas." A política funcionava?
O horizonte do teatro é sempre o não sagrado e o político, daí que a igreja desconfiasse dele, pois era o terreno absoluto da discussão do laico e da dúvida ao contrário de ser um lugar de fé. No teatro toda a gente está iluminada, até os espetadores mesmo que pouco, não estão no escuro da sala do cinema, nem nas trevas, são uma luzinha do racionalismo. O teatro nasce com as Luzes, com Diderot e Goldoni. Nós começámos sem qualquer subsídio do Estado, que nos ignorou durante três anos como era seu costume, preferindo os mais velhos e as companhias que tinham 15 anos de atividade. Eu não tinha nem um, embora tivesse 30 anos de atividade mas sem a companhia. Fomos obtendo apoios da Gulbenkian, da Culturgest e entidades que produziam os espetáculos do D. Maria II.
Página 324: "Já não há jornal que me ponha triste, disponho do cinismo suficiente para viver as adversidades com um sorriso." A escrita sobre o teatro é inferior na imprensa?
É promocional, escreve-se sobre teatro não tendo visto o espetáculo, apenas os ensaios e sobre uma promessa, tentando dizer o que vão ver. Não há reflexão posterior. Neste momento, só existem dois críticos e com espaço muito reduzido, além de um prémio da crítica que não percebo quem o atribui pois não sei onde exercitam a sua profissão. Faz muita falta a crítica, e não é para dizerem bem, mas para haver um espaço de discussão. Não deixa de ser interessante que a crítica completa ao espetáculo Do Alto da Ponte tenha sido feita no dia a seguir à sua apresentação em Ponte de Lima por um crítico galego e em galego. Em Portugal não houve uma crítica sequer. Claro que em todo o mundo está assim, desapareceu em França e em Espanha é uma catástrofe, só permanece na Inglaterra, no The Guardian.
Página 398: "Ao situar-me em contrapêlo do teatro que anda a ser imposto (oficialmente, sim), ao reclamar um teatro que havia de ser segredo de cada noite e não estridente festejo do Poder." Como é a relação com o Ministério da Cultura?
O Ministério da Cultura tem sido muito inconstante na sua política. Neste momento há uma questão que é preciso saber e ninguém tem dado resposta: a Direção Geral das Artes existia como instrumento de apoio às iniciativas não estatais, mas neste momento é uma espécie de saco azul dos teatros nacionais e municipais porque estes não têm orçamento suficiente. A pergunta neste momento é: querem fazer do teatro o mesmo que à ópera? Que só existe nos teatros nacionais e municipais, ou pode continuar a existir nos teatros chamados independentes; fora das normas, com pouco dinheiro, sendo possível continuar a existir. Os trambolhões que aconteceram nestes últimos três anos [no ministério] foram demasiado grandes e parece ser uma resposta: não queremos? Queremos teatro só no D. Maria, no São João e São Luiz? Quanto ao saco azul, o teatro nacional não tem orçamento para produzir. Porque precisa que a companhia que vai criar o espetáculo traga não apenas trabalho artístico mas que funcione como uma securitas artística que traz mão de obra, preços mais baratos do que aqueles quer seriam contratado, e traga dinheiro. Numa produção que seja feita pelo Teatro D. Maria II, embora as receitas sejam para eles, o teatro paga 60% das despesas totais da produção. E eu entro com quanto? Entro com 40, 50 ou 70 % que, por vezes, não tem retorno. É o dinheiro da DGArtes que está a funcionar como saco azul para os teatros nacionais. Não pode ser e essa é a pergunta a que os governos têm de responder, designadamente o próximo. Queremos que o teatro seja só subsidiário das grandes estruturas nacionais ou, como foi histórico em Portugal em 1972, quando começaram os teatros independentes, que se implante fora das grandes instituições?
A Mesa Está Posta
Jorge Silva Melo
Editora Livros Cotovia, 407 páginas