Fernando Lemos, o designer. Aquele lado que ninguém viu (até agora)

O fotógrafo surrealista fez uma longa carreira como designer gráfico no Brasil a partir dos anos 50. Esse trabalho, nunca mostrado em Portugal, pode ser visto a partir de 6 de junho na Cordoaria Nacional.
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Enquanto preparava uma exposição sobre as trocas criativas entre Portugal e Brasil, a diretora do MUDE - Museu do Design e da Moda viajou até S. Paulo, em 2017. Inesperadamente, Bárbara Coutinho e a curadora brasileira desse projeto, Adélia Borges, foram recebidas por Fernando Lemos na sua casa. Movia-as a curiosidade pelo artista e a Bárbara Coutinho a vontade de convidar o português para desenhar o cartaz de "Tanto Mar", o nome dessa mostra que passou pelo antigo Museu do Ultramar, na Ajuda, em 2018.

Fernando Lemos aceitou a proposta de Bárbara Coutinho e, conta a própria, "começou, literalmente, a abrir caixas e caixotes".

Eram exemplos dos muitos trabalhos que Fernando Lemos, litógrafo formado pela Escola de Artes Decorativas António Arroio, levou a cabo ao longo da sua carreira. Nos anos 50, o artista, sempre lembrado pelas suas fotografias surrealistas, emigrou para o Brasil, onde se afirmou como designer.

Mostrou desenhos inéditos guardados em dossiers, esboços, artes finais. Material que nunca havia sido exposto, como o artista confirmou a Bárbara Coutinho. De imediato, a diretora do MUDE propôs que se fizesse uma exposição com este trabalho em Portugal. E também a isso Fernando Lemos disse sim, começando a reunir todo o material.

É essa exposição que pode ser vista a partir de quinta-feira, dia 6, no torreão poente da Cordoaria Nacional (o mais próximo do MAAT).

Avançamos, pois, até meados de maio de 2019. Caixas de pinho claro, com selo do Brasil no remetente, esperam revisão e observação num corredor amplo do armazém das reservas do MUDE - Museu do Design e da Moda, em Lisboa. Contêm esses livros, desenhos, lenços, fotografias, provas de anúncios e outros objetos assinados por Fernando Lemos.

Bárbara Coutinho cita uma expressão do curador da exposição, o brasileiro Chico Homem de Mello, designer e colecionador, para sintetizar o trabalho artista: "arquipélago Fernando Lemos". Afinal, o artista trabalhou a comunicação visual sempre ao nível da bidimensionalidade, "mas em escalas tão diferentes como a tapeçaria, o mural urbano, a estampagem de tecidos, o postal, o cartão, o azulejo, a capa de revista ou de livro". De tudo um pouco haverá nesta exposição.

Serão 140 peças, e, entre elas, algumas fotografias de Fernando Lemos. "Vamos ter um núcleo vindo do Museu Berardo, mas lido sob a perspetiva do design", diz Bárbara Coutinho. É a exceção.

"Falar de Fernando Lemos é falar de fotografia de cariz surrealista e da pintura e do desenho abstrato", assume a diretora do MUDE lembrando exposições pretéritas - em Lisboa e no Porto - dedicadas à obra do artista. Nunca sobre design gráfico, "sem escorregar para as artes plásticas". E a relação é evidente, diz Bárbara Coutinho.

Da primeira máquina fotográfica à viagem para o Brasil

Foi do outro lado do Atlântico, a partir de 1953, por motivos políticos, que o artista fez a sua carreira como designer. Em fevereiro de 2018, entrevistado pelo DN, contava que continuava a fazer um desenho por dia e a escrever ao sabor do que ia lendo, ouvindo, vendo. A fotografia, que tanto o entusiasmou em 1949, quando comprou a primeira máquina fotográfica, uma Flexaret, com a qual fez os primeiros ensaios de manipulação da imagem.

Tem 93 anos e passou duas ditaduras. Uma da sacristia, em Portugal; outra de quartel, no Brasil. Tinha 27 quando chegou ao novo país, poucos mais quando se tornou cidadão brasileiro. Foi, decidido a não voltar, com ampliações das fotografias que tinha exposto ao lado de Fernando Azevedo e Vespeira e cartas de recomendações António Pedro, Jorge de Sena e Adolfo Casais-Monteiro. Um telefonema do poeta Jorge Bandeira levou-o a expor no Museu de Arte Moderna (MAM), do Rio de Janeiro. Recebe outras encomendas: desenha capas da revista "Manchete". Pouco tempo depois, mudou-se do Rio de Janeiro para São Paulo, onde encontrou mais oportunidades profissionais. Trabalha nas comemorações do 4.º Centenário do Brasil, recebe o prémio de melhor desenhista nacional, em 1957.

Estará em Lisboa para a inauguração da exposição que batizaram, sem mais rodeios, de Fernando Lemos Designer.

Designer, pintor, fotógrafo. Artista

Com esta exposição, acredita Bárbara Coutinho, "a história do design em Portugal ganha mais um capítulo, porque a dimensão e diversidade do trabalho de Fernando Lemos assim o justifica". Por outro lado, acrescenta, "raramente se fez uma relação entre atividade como designer e pintor". Salvo uma breve referência do crítico de arte Rui Mário Gonçalves e outra da historiadora de arte Margarida Acciaiuoli, que diz de Fernando Lemos que assumiu o design como uma das vertentes possíveis da concretização do desenho" (Editorial Caminho, 2006).

O design expositivo é de Nuno Gusmão, do atelier P-06 (que colaborou com os Sami no projeto expositivo da mostra dedicada a José António Tenente).

Ao mesmo tempo que a exposição está na Cordoaria até 30 de setembro, objeto de um catálogo (edição Imprensa Nacional Casa da Moeda), na Galeria Ratton editam azulejos da sua autoria e na Galeria 111 mostra-se o seu desenho e será reeditado o seu livro de poesia. O realizador Miguel Gonçalves Mendes (José e Pilar) está a fazer um documentário sobre o artista. Resume Bárbara Coutinho: "É uma cabeça incrível".

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