ESTREIAS: um "thriller" de amor e morte em tom chinês
Ensina a sabedoria tradicional que não devemos confundir a árvore com a floresta... Numa inversão mais ou menos perversa, podemos defender a ideia de que a visão global da floresta não esgota o conhecimento particular de cada árvore... As metáforas nem sempre nos ajudam a esclarecer as ideias, sobretudo quando o que está em jogo é a gigantesca China, neste caso a nossa metafórica floresta. Todos sabemos, o assunto está mesmo na rotina dos noticiários, que a China vive um processo de vertiginoso crescimento que, segundo alguns observadores, visa a reconquista dos seus poderes imperiais, agora face aos EUA de Donald Trump (se o leitor se interessa pela complexidade que tudo isso envolver, recomendo vivamente o mais recente livro de Bernard-Henri Lévy, L"Empire et les Cinq Rois).
Enfim, é de cinema que falo e dessas árvores metafóricas que são os cidadãos chineses. Dito de outro modo: há alguns talentosos cineastas da China que, com paixão e método, continuam a interessar-se pelos homens e mulheres do seu país, encenando-os em histórias tocantes, quase sempre de grande vibração dramática.
Jia Zhang-ke, nascido em 1970 em Fenyang (província de Shanxi), é um desses cineastas e dos que, felizmente, tem estado bem representado no mercado português. O seu filme mais recente, As Cinzas Brancas Mais Puras (apresentado na competição de Cannes/2018), chegou agora às nossas salas.
Por bizarro preconceito (favorável ou desfavorável, em qualquer caso preconceito), supõem-se muitas vezes que as histórias cinematográficas chinesas são variações "obrigatórias" sobre a pompa e circunstância que está condensada em O Último Imperador, esse filme lendário de Bernardo Bertolucci consagrado nos Óscares de 1988. Belo filme, sem dúvida, aliás realizado por um... italiano. Mas não é essa a questão.
Observe-se As Cinzas Brancas Mais Puras. Que encontramos aqui? Antes do mais, uma intriga de amor e morte, protagonizada pela frágil Zhao Qiao (Zhao Tao, musa do realizador e também sua mulher na vida real) e esse homem inquietante que é Guo Bin (Liao Fan) - ele é um chefe mafioso, ela está apaixonada por ele. Num confronto urbano que ameaça descambar em extrema violência, ela dispara um tiro para o ar de modo a defender o seu amante... Acaba por ser detida, passa vários anos na prisão e regressa acreditando que pode refazer a sua relação...
Em boa verdade, estamos muito longe de qualquer visão mítica ou esotérica dos cenários chinesas: As Cinzas Brancas Mais Puras é um "thriller" de perturbante intensidade emocional, assombrado por uma permanente ameaça de morte. E se queremos sugerir algum paralelismo temático e estilístico, a primeira hipótese em que pensamos será, muito provavelmente, a do americano Quentin Tarantino.
Entenda-se: não precisamos de procurar referências para caucionar o trabalho de Jia Zhang-ke. Até porque os filmes que dele conhecemos nascem sempre de um profundo amor pelas gentes do seu país, a começar por Plataforma (2000), espantoso retrato das convulsões da Revolução Cultural maoista vistas a partir da experiência de um grupo teatral que, num inusitado desafio (cultural!), se transfigura em banda rock.
Podemos mesmo dizer que o novo filme de Jia Zhang-ke se filia nessa grande tradição narrativa que é o melodrama, tradição que sempre ligou simbolicamente o Ocidente e o Oriente. Lembrando também o que tantas vezes se esquece ou simplifica: o espírito melodramático não nasce de qualquer exaltação abstracta do amor. Bem pelo contrário: tal como acontece em As Cinzas Brancas Mais Puras, é através do realismo mais cru que partimos à descoberta da possibilidade de o amor acontecer. Ou morrer.
Povos em movimento? Podia ser o subtítulo de muitos filmes contemporâneos das mais variadas origens, apostados em refletir as convulsões políticas e económicas que têm determinado as tragédias migratórias do século XXI. Neste caso, serve de título a um belo ciclo da Cinemateca, a começar sexta-feira (dia 1, 21.30) com a projeção conjunta de O Emigrante (1917), de Charles Chaplin, e A Emigrante (2013), de James Gray, duas obras separadas por quase um século, ambas refletindo a chegada de muitos europeus a Nova Iorque, via Ellis Island.
Organizado a partir de uma trilogia temática - "migração, exílio, diáspora" -, o ciclo será um dos acontecimentos dominantes na programação da Cinemateca ao longo dos meses de março, abril e maio. Entre as sessões mais próximas surgirão, por exemplo, os clássicos As Vinhas da Ira (1940), de John Ford, adaptação do romance de John Steinbeck sobre a Grande Depressão, Rocco e os Seus Irmãos (1960), de Luchino Visconti, centrado na odisseia de uma família meridional no norte industrializado de Itália, e Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, a partir do romance de Graciliano Ramos, sobre uma família de camponeses brasileiros em luta pela sobrevivência.
Da mais recente produção portuguesa, surge uma realização de Rita Azevedo Gomes, adaptando uma novela de Robert Musil (1880-1942) centrada numa dama portuguesa do século XVI casada com um nobre de ascendência germânica. Intitula-se, justamente, A Portuguesa e refaz, com delicadeza e imaginação, uma tradição que cruza as memórias históricas com o apelo poético. Ponto fundamental na sedução do filme é o magnífico trabalho de direção fotográfica da responsabilidade de Acácio de Almeida.