Cannes: sexo explícito é coisa "trendy" no festival
O sexo, o sexo. Não é o "horror, o horror", mas é estigma que Cannes 2019 trouxe para a mesa de discussão. Nos corredores do festival só se fala da cena de 12 minutos de sexo oral de Mektoub, My Love: Intermezzo, o filme de Abdellatif Kechiche que passou em competição ontem com aura de escândalo.
O maior festival do mundo teve coragem de convidar para a a sua seleção oficial uma obra que pode criar discussão: filma constantemente o corpo feminino com proximidade "transgressiva", e, como se não bastasse, a já famosa cena em que um homem (árabe, por sinal) faz sexo oral com a protagonista numa casa de banho de uma discoteca. Cena com detalhes explícitos, sem duplos e muita saliva. O cinema a cheirar a intimidade mas este "segundo canto" está a destinado a criar resistências na facção da polícia do politicamente correto, coisa que o anterior Mektoub, Meu Amor: Canto Uno (estreado em janeiro em Portugal) conseguiu granjear em França, sobretudo porque muitas feministas acusaram o cineasta francês de abusar dos planos próximos dos traseiros das suas atrizes.
Pois bem, agora vai cair o carmo e a trindade: nestas três horas e meia há quase só planos dos corpos roliços das jovens, como que em medo de provocação extrema. Por outro lado, Kechiche está também a filmar uma libertação feminina: estas jovens de origem árabe têm a liberdade no corpo e procuram o seu prazer e não o do homem. Em última instância, os defensores de Kechiche vão catalogar esta sequela como feminista.
Intermezzo, que era para ter quatro horas, só pode ser visto por quem viu o primeiro - a sua ligação com a primeira história é literalmente umbilical, seguindo-se o percurso de Amin, o jovem candidato a escritor e cineasta que é afinal a sombra do próprio Kechiche. Nesta segunda parte da trilogia ele continua a observar, neste caso numa pista de dança de uma discoteca de verão num setembro dos anos 1990 na praia de Sète, perto de Marselha.
Tudo se passa quase sempre na pista de dança ou no balcão do bar. O convite é para estarmos numa noitada, sentirmos a vertigem do "tecno", ao mesmo tempo que ouvimos o sussurrar de conversas sobre engates, tramas românticas e segredos (descobre-se que a protagonista está grávida), tal e qual como num romance de época. Mas Kechiche é perito em fazer do "tour-de-force" musical um estímulo erótico inovador. O problema maior é que o efeito surpresa do primeiro filme já cá não mora.
O sexo explícito foi também o motor de "voyeurismo" de Liberté, de Albert Serra, produção do português Joaquim Sapinho. Uma história de encontros sexuais sado-masoquistas num bosque (as filmagens foram todas no Alentejo). O realizador catalão não quer saber de dispositivos narrativos e pede ao espetador para participar no jogo do "quem espreita". Tem os seus momentos, mas parece um dos filmes menos conseguidos de Serra, mesmo apesar de ter posto muita gente a falar da ousadia da encenação do sexo em modo "cruising" e com vénia a Marquês de Sade. Passou no Un Certain Regard e na Film Français, na "poule de críticos" foi o filme mais odiado.
Bem mais interessante é Dog's don't Wear Pants, de J.K. Valpeapaa, cineasta finlandês que nos conta uma história de como um viúvo é atraído para o submundo do sexo sado-masoquista e se apaixona por uma dominatrix. O corpo e o poder da sexualidade feminina repensados para haver reflexão sobre a condição humana. Além de ser um filme sem medos (há cenas de comédia sexual misturadas com violência sádica interdita a mentes mais sensíveis), é um objeto que sabe criar ambiências e contar uma história com um ritmo brutal.
Este conto de homens transformados em cães domésticos foi das surpresas da Quinzena dos Realizadores.