"A orientação sexual diferente não altera a essência da condição humana"
Acabado de chegar do Japão, o escritor cubano Leonardo Padura sente-se aliviado por estar em Lisboa. Onde além de compreender a língua e ser compreendido, é a última paragem de uma digressão por vários países antes de entrar no avião de volta à Ilha. Padura está a ser publicado em mais de três dezenas de línguas e as edições dos seus livros multiplicam-se.
À porta do hotel, a fumar o resto do cigarro que deixara pelo início, Padura confessa que os livros do detetive Mario Conde foram importantes para ser reconhecido mundialmente, mas destaca Adeus Hemingway como o que o fez saltar a nível literário para fora de Cuba definitivamente. Depois, foi o empurrão de O Homem que Gostava de Cães, o romance sobre Trotski, que lhe abriu ainda mais portas à internacionalização.
Nada no sucesso de Padura o fez abandonar Cuba, até porque tornou-se um dos habitantes de Havana que celebram as memórias da cidade e faz delas a matéria-prima para a sua ficção. Continua a viver na mesma casa, rodeado por familiares noutros andares do edifício, onde tem o seu espaço para escrever. Longe estão os tempos em que aos 15 anos ia cortar cana nas campanhas revolucionárias ou enquanto jornalista na cobertura da aventura militar cubana em Angola.
Cada vez que sai de Cuba tem sempre na agenda a promoção dos romances, apresentações e entrevistas. Em Lisboa nada mudou, mas nota-se a ansiedade em fechar as entrevistas o mais rápido possível. Adivinha-se que mais ano menos ano esta vida de relações públicas irá acabar e ficar menos falador. Aliás, a entrevista decorre no mesmo sofá do mesmo hotel em que há mais de uma década deu uma entrevista sobre um anterior romance e o modo como fala não desmente que está desejoso de voltar e continuar a escrever o livro que tem em mãos.
Para Padura, o pior destas conversas é irem sempre parar à política, no entanto culpa-se por isso pois os seus livros suportam-se na realidade do país. O seu maior desejo era que se lhe perguntasse sobre a estrutura da obra, a construção dos personagens, a investigação... Recorda-se-lhe a propósito da importância das questões políticas que lhe são feitas um artigo que escreveu e no qual dizia que gostava de ser como o escritor Paul Auster e falar sobre cinema, literatura e basebol. Responde: "O que eu queria dizer era que as conversas que tenho com jornalistas são inevitavelmente encaminhadas para o território mais próximo da política que as perguntas que colocavam a Auster. Sobre coisas que eu também gosto de falar! "
Esse é, contudo, um tempo que passou até para Paul Auster, faz questão de referir: "O problema é que até para Paul Auster o tema das entrevistas mudou completamente com a nova realidade dos Estados Unidos e agora fazem-lhe imensas perguntas sobre Trump." A razão é: "Isso acontece quando o escritor tem uma relação ativa com a sociedade. Se há alguns que vivem num mundo muito próprio, a maioria dos romancistas usam cenários reais e têm uma relação com o contexto sócio-político dos seus países." No caso de um escritor cubano, acrescenta, "o mundo em geral quer saber o que se passa lá e, como me aconteceu agora no Japão, a curiosidade é grande. Todos querem saber o que se passa ou vai passar, como é o quotidiano ou a relação com os EUA."
É mais fácil escrever nesta Cuba pós-Fidel Castro?
Escrever é sempre difícil, e se queremos escrever bem ainda é mais complexo porque as condições de Cuba sempre acrescentaram uma dificuldade adicional ao nível da censura e da autocensura. Nos anos 1970 houve um período de muita repressão cultural, que foi aliviada nos anos 1980 e melhorou no anos 1990 porque as instituições culturais cubanas paralisaram devido à crise económica muito profunda. Essa situação permitiu que o espaço de criação tenha crescido e hoje o que acontece é que existe uma grande liberdade porque cada um cria o que quer. No entanto, o espaço de difusão e promoção das artes continuam a seguir códigos políticos, o que faz com que os criadores estejam de um lado e a promoção oficial do outro. No meio de tudo isto, está a possibilidade de escritores, músicos, pintores ou cineastas fazerem uma obra independente e à margem do Estado cubano: eu tenho uma editora em Espanha, há pintores com galerias nos EUA, cineastas com facilidade da Europa.
Este novo livro, A Transparência do Tempo, traz um detetive Mario Conde diferente. O que se passa?
Os primeiros quatro romances de Mario Conde fazem parte de um ciclo a que chamei as quatro estações. São livros escritos nos anos 1990 e queria que, apesar de independentes, pudessem ser lidos como quatro grandes capítulos de uma única obra. Nesse sentido existia neles uma unidade de estilo e linguagem de época, porque todos decorrem no ano de 1989, quando Conde tem um primeiro caso no mês de janeiro e deixa a polícia em outubro. Quando decidi recuperar o personagem em Adeus Hemingway e utilizá-lo em Neblina do Passado já Conde está noutro tempo e numa nova profissão, que é a de comprar e vender livros em segunda mão. Em Hereges aparece como um personagem importante mas não é o protagonista do romance que se passa em 2008.
E agora em 2014, ainda mais diferente!
A Transparência do Tempo passa-se em 2014 e Mario Conde está a fazer 60 anos. Entretanto, aconteceram alterações importantes no meu trabalho enquanto escritor com os livros anteriores ao querer avançar literariamente e complicar o meu trabalho. Esses quatro livros de Mario Conde tornaram-me conhecido, deram prémios e encontrei editores em vários países do mundo, mas não queria sentar-se em cima desse situação. Pretendia encontrar algo diferente na escrita, por isso neste livro todo o processo de investigação está cruzado com um elemento de caráter histórico que não está relacionado diretamente com a história no presente.
Há uma rutura com o Mario Conde tradicional?
No sentido de que Mario Conde está em 2014, a fazer um auto-exame do que foi a sua vida e as mudanças na sociedade cubana, sendo que tudo isso resulta da rutura histórica que aconteceu em Cuba com a Revolução. Sobre a revolução cubana podem ter-se várias opiniões, das mais favoráveis às mais negativas, o que não se pode negar é que foi uma revolução que mudou o sistema económico, social e político do país. E isso influenciou a vida de todos os cubanos, especialmente os da minha geração, a que cresceu no meio dessas mudanças todas e as viveu. Queria desenvolver esse conceito de como a vida das pessoas pode mudar devido a acontecimentos históricos, por movimentos sociais ou revoluções, que é o que se vê através deste percurso histórico no romance, onde no centro de tudo está a imagem de uma Virgem Negra que tem um valor cultural, histórico e místico muito importante. Tudo isso faz com que o romance tenha ambições - não sei se as atingi da melhor forma - de ser diferente do que já publiquei.
Uma das grandes diferenças deste romance é o cenário. Conde circulava por bairros de Havana degradados e agora fá-lo por bairros muito pobres, que não se imaginava existir na cidade. São cenários pós-castristas?
Esses bairros já vêm de antes da revolução cubana. Podemos comparar com Portugal, onde havia regiões pobres, mas a pobreza de hoje é diferente da de 1950 e em Cuba, passa-se o mesmo. Mesmo que a revolução tenha eliminado esse nível de pobreza e houvesse uma pobreza digna, a partir dos anos 1990 esse equilíbrio rompe-se e começa a dilatar-se pela base muito lentamente e na última década com mais velocidade. Aliás, vemos que há um setor da sociedade com sinais exteriores de riqueza, mas um rico cubano comparado com um rico mexicano é um miserável.
Conhece esses lugares bem?
Eu não imaginava que existiam lugares assim, porque eram muito pequenos antigamente. Hoje, são habitados por uma grande quantidade de pessoas - não sei quantos nem o Governo o sabe - e dentro da cidade de Havana têm começado a surgir locais com maior pobreza. Creio que esta Havana de 2014, que se parece com a de hoje, é uma cidade em que o tecido social homogéneo que existiu acabou e não vai regressar. O pior não é que haja gente que tenha enriquecido, é a pobreza. E ao nível oficial em Cuba há mais uma luta contra a riqueza do que contra a pobreza e isso é o oposto do que deveria acontecer.
Entrou em temas que não eram habituais, como o protagonista gay, a colaboração com a polícia e o tema da religião...
Cada romance tem um território diferente e enquanto escritor precisava de novos cenários. É difícil que um indivíduo possa fazer uma investigação policial sem colaborar ou aproximar-se das autoridades, que é a única que tem possibilidade de fazer a investigação real num acontecimento criminoso. No caso do protagonista gay, é preciso encontrar novos personagens e ele é um caso. Em Cuba reprimiu-se a homossexualidade durante muito tempo, isso mudou nos últimos anos e deixou de ser um problema político para a sociedade. Contudo, sempre se falou em Cuba do gay como uma vítima, mas eles são pessoas iguais a todos e há os que são boas pessoas e os que são más. A orientação sexual diferente não altera a essência da condição humana e aqui escrevo sobre um gay que parece ser uma vítima e a dado momento o perceberá que não é bem assim.
Porque intervala partes da história da Catalunha?
Quero falar da relação do homem com a história através do tempo, que tem sido sempre uma relação traumática porque altera a vida. Por outro lado, é a presença de um caráter literário que permite que o espaço do romance seja mais universal. Este romance foi um desafio porque escrever um romance policial que não é apenas um policial mas tem uma estrutura muito mais complexa, uma linguagem mais elaborada e personagens que podem ou não ter a ver com a trama policial. Desde o meu primeiro romance policial que tenho muito claro que o livro tem de ser principalmente um romance, só depois policial. E um romance exige uma escrita responsável, com valores estéticos, qualidade artística e que o escritor dê o máximo em cada momento.
Como é que os cubanos veem o que se passa no Brasil e na Venezuela?
Há uma visão oficial: o Governo tem uma relação muito estreita com o governo venezuelano e uma relação de conflito com o do Brasil, bastante diferente da do tempo do PT. A nível popular, vive-se um momento muito tenso da economia que se reflete na vida quotidiana de todos os cubanos. O Brasil e a Venezuela eram sócios comerciais de Cuba muito importantes e essa alteração reflete-se na realidade social cubana e isso preocupa as pessoas. É como a política de confronto de Trump tão diferente da de Obama.
Conde alguma vez terá um romance no cenário do basebol?
O basebol faz parte da identidade cubana porque chega a Cuba no século XIX, converte-se num desporto comum e torna-se num espaço de encontro social, cultural e racial muito importante no fim desse século. Misturam-se brancos e negros, desporto e música - é como o futebol na Europa, onde as massas expressam uma paixão. Quanto a ser cenário de um livro, pode vir a ser, mas o basebol é um desporto muito difícil de levar à literatura devido à sua complexidade. Só os que o entendem é que percebem a sua enorme capacidade dramática. Por isso quase todos os livros com basebol são de escritores norte americanos.
Leonardo Padura
Porto editora, 406 páginas