Mãos no Fogo, ou o cinema perante a desordem do mundo.
Mãos no Fogo, ou o cinema perante a desordem do mundo.

Henry James revisto em parábola cinematográfica

Tendo como base a novela 'The Turn of the Screw', de Henry James, o novo filme de Margarida Gil, 'Mãos no Fogo', “actualiza” os seus elementos, tendo como personagem central uma jovem cineasta interessada nos mistérios de um solar do Douro.
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Se é verdade que a passagem do lirismo para o assombramento é uma fundamental linha de força do cinema de Margarida Gil (lembremos o exemplo de Paixão, 2012), então o seu novo filme, Mãos no Fogo, a partir de hoje nas salas, pode servir de ilustração exemplar dos seus temas e obsessões. Com uma derivação desconcertante: estamos perante um filme “livremente inspirado” (expressão usada no genérico) em The Turn of the Screw, lendária novela gótica de Henry James publicada em 1898 - existe no mercado português uma tradução de Margarida Vale de Gato, com chancela da Relógio D’Água, intitulada A Volta do Parafuso.

Escusado será dizer que a adaptação é mesmo muito livre, a certa altura afastando-se de qualquer rima com os acontecimentos narrados por James. Em vez da governanta das duas crianças tocadas por qualquer coisa de maligno, temos uma jovem cineasta, Maria do Mar (Carolina Campanela), que anda a realizar um filme sobre os velhos solares do Douro - o genérico é mesmo feito sobre as suas mãos a preparar a máquina de filmar e o gravador de som. 

Na sua dimensão de parábola, dir-se-ia que o projeto envolveu uma contradição consciente: por um lado, celebra-se a beleza de uma paisagem metodicamente valorizada pela direção fotográfica de Acácio de Almeida; por outro lado, o tratamento “psicológico” das relações crianças/adultos vai-se desvanecendo para dar lugar, nas cenas finais, a uma teia de sugestões e simbolismos em que o cinema se transforma em qualquer coisa de “teatral”, procurando os sinais - imagens e sons, sem dúvida - de uma poesia assombrada pela presença difusa da morte.

Mãos no Fogo distingue-se como expressão de um cinema indiferente aos códigos correntes de narrativa e verosimilhança. Há desequilíbrios no labor dos atores, especialmente nas crianças, que contrariam a dimensão de pesadelo que se procura sugerir. Seja como for, eis um exemplo de um cinema não alinhado com as leis que dominam o nosso espaço audiovisual, gerando filmes “novelescos” que se limitam a imitar, até ao tédio absoluto, a vulgaridade de muitas ficções televisivas. Em Mãos no Fogo, a desordem do mundo não é pitoresca nem moralista, antes se enraíza na violência que pode marcar as paixões humanas.

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