Helena Ferro Gouveia: “Os nossos paradigmas ocidentais impedem-nos de perceber o mundo”
Em todas as guerras, desde sempre, o corpo da mulher é considerado um espólio. A violação continua a ser uma arma.” Quem assim fala, sem recear as implicações das palavras, é Helena Ferro Gouveia, comentadora de política internacional na CNN Portugal , que acaba de publicar o livro O Dia que Mudou Israel (edição Oficina do Livro). Construída como uma longa reportagem no terreno, esta obra procura dar voz aos sobreviventes do ataque do Hamas, a 7 de Outubro de 2023: “Sinto que se varreu demasiado depressa o sofrimento daquelas vítimas. Mas tudo aquilo foi chocante e não pode ser relativizado. Chocou-me muito que tudo acontecesse num pacífico Festival de Verão e tivesse feito vítimas de forma indiscriminada: Jovens na sua maioria, muitos deles pacifistas e até esquerdistas, que estavam ali apenas para divertir.”
A partir deste sentimento, Helena foi para Israel, “país que conheço muito bem”, para escutar quem sobreviveu à tragédia. “Naquele 7 de Outubro senti, como disse o Bernard Henri-Lévy, que estávamos perante um acontecimento que mudaria Israel para sempre. Não poderia ser de outra maneira: quando olhamos para os números percebemos que este foi o terceiro maior atentado terrorista em termos nominais desde 1973, e em termos de mortos per capita é o mais sangrento nos últimos 100 anos.” Em causa, assegura, “não estão as opções políticas dos Governos. Estou só a falar do sofrimento das pessoas.”
O que Helena Ferro Gouveia tem bem presente é que “os judeus são a etnia mais perseguida da História”, uma consciência de que se lhe tornou mais evidente quando viveu na Alemanha (onde esteve cerca de 20 anos): “Em Portugal, não tinha uma relação particular com a comunidade judaica, mas, uma vez na Alemanha, fui confrontada com a difícil, mas problematizadora, relação que os alemães têm com o seu passado recente. Devo ter lido tudo o que se publicou sobre o Holocausto e são algumas centenas de obras.” Mais determinante ainda terá sido o encontro com o antigo presidente do Comité Nacional dos Judeus na Alemanha, Ignatz Bubis: “Fui entrevistá-lo, como jornalista que ainda era, e acabámos por ficar amigos. Mais tarde, ele fez-me prometer que nunca deixaria que a memória do Holocausto se perdesse.”
Conhecida do grande público como comentadora de Política internacional na CNN Portugal, Helena procura ultrapassar o jargão académico para chegar ao maior número possível de pessoas. “Fui jornalista durante vários anos e estou perfeitamente consciente de que há uma grande diferença entre a percepção da realidade baseada apenas no estudo e o que efetivamente se passa no terreno, tal como estou ciente de que uma coisa é o discurso que os políticos fazem para a opinião pública e outra muito diferente é o que fazem quando ninguém está a ver.”
Para além de jornalista, Helena foi ainda gestora de projetos internacionais de cooperação e desenvolvimento e ajudou a constituir redes de rádio em vários países da América Latina. Quer como cooperante, quer como docente esteve em dezenas de países, como Argentina, Bolívia, Brasil, Moçambique, Timor, Guiné-Bissau, Gana, Uganda, Quénia ou Sudão do Sul. “A experiência no terreno foi fundamental para mim. Aprendi, por exemplo, que há lugares em que a rádio é fundamental para avisar as pessoas de que vão chegar os médicos ou para lhes ensinar alguns procedimentos básicos de higiene pessoal.” Do mesmo modo, foi nestas circunstâncias que Helena compreendeu que “os paradigmas ocidentais, das nossas geografias confortáveis, nos impedem de perceber o mundo na sua globalidade. Um terreno como um campo de refugiados, por exemplo, é algo que ultrapassa a nossa compreensão.”
De regresso a Portugal em 2017, fez um curso de auditores no Instituto de Defesa Nacional e um mestrado na Academia Militar. O tema da sua dissertação seria a liderança feminina nas Forças Armadas, assunto negligenciado durante muito tempo, em Portugal como noutros países. Daí, nasceria o seu segundo livro (o primeiro foi Domadora de Camaleões), Mulheres na Guerra, publicado em 2023: “Mulheres nas guerras sempre houve, mas, de repente, quando a Ucrânia foi invadida, o mundo apercebeu-se que também há mulheres na linha de combate.”
Considerando que estes são livros que lhe aconteceram, fruto das circunstâncias, Helena Ferro Gouveia admite sentir alguma nostalgia do tempo em que era possível fazer “slow journalism, com reportagens de investigação, que demoravam meses e ocupavam espaço nos jornais, embora continue a considerar que o jornalismo ainda é uma grande escola de pensamento e de escrita.” Admite também de que gosta da reflexão íntima que a escrita lhe oferece: “Adoro escrever. Tenho dois projetos em carteira e, de forma mais lenta, estou também a trabalhar num romance.”