Gentleman Jack: o Sexo e a Cidade do século XIX
Sally Wainwright é uma criadora de conteúdos televisivos que para muitos é vista como o novo grande tesouro da televisão inglesa. Depois dos sucessos de Happy Valley e do Last Tango in Hallifax, fez que a HBO e a BBC se aliassem para uma nova série de época baseada na vida de Anne Lister.
A autora de um diário que em 1832 deu que falar com um casamento lésbico absolutamente inédito e por ter escrito nesse relato quatro milhões de palavras, grande parte num código que foi decifrado pela comunidade literária inglesa neste século.
Gentleman Jack é um drama de época para rivalizar com a fama de Downton Abbey mas coloca a questão de género e identidade sexual na ordem do dia. Nesta primeira temporada disponível em Portugal vemos como Anne conhece a sua grande paixão, uma herdeira milionária, vizinha da casa dos pais. Mas a sua história é um exemplo de emancipação feminina e um retrato feminino fora do vulgar.
Lister, tal como a vemos na série, assumidamente masculina, vestia apenas negro e era de uma inteligência fora do vulgar, tendo pegado nos negócios de carvão do pai, desenvolvido investigação médica e atingido feitos como alpinista. Uma verdadeira mulher da Renascença que sempre recusou vergar-se perante uma sociedade fechada e machista.
Para Sally Wainwright foi importante retratá-la com justiça e um evidente heroísmo. Aliás, o que é notável na série é que, para além da mensagem de tolerância, a escrita do argumento está centrada numa ideia muito concreta de entretenimento bem à maneira da BBC. Gentleman Jack tem tensão, diversão e as doses certas de discurso político.
E é a própria criadora quem nos conta que os tempos estão a mudar, sobretudo pela forma como conseguiu ter luz verde para avançar com este projeto: "A atitude é outra, mas não deixa de ser uma série para o grande público, mesmo falando de uma mulher que desafiou as convenções. Jack era o termo que antigamente os homens chamavam às lésbicas. Era o mesmo que 'fufa' (dyke). A Anne sabia que era assim chamada e, claro, não gostava muito. A alcunha foi ficando através da tradição oral."
Perguntamos-lhe se nesta altura a própria comunidade de cineastas e atores ainda tem preconceitos com o tema e a resposta é surpreendente: "Cada vez mais, as pessoas gay que trabalham nesta indústria são muito articuladas no seu discurso de assumirem a sua sexualidade. Se há quem tenha preconceito, não sei, talvez até exista preconceito mas não tenho tido exemplos. Eu não tenho problemas nenhuns."
Para já, as críticas e o hype estão com a série. Sally tinha já proposto esta história de uma mulher extraordinária há 19 anos. E é também a própria a perceber que a sua proposta não avançou porque também ainda não tinha dado provas concretas na ficção televisiva. Claro que para Gentleman Jack existir foi também fulcral ter existido a febre das séries de período vitoriano. Nesse sentido, sem Downton Abbey, Gentleman Jack não tinha nascido. Dê por onde der, esta é uma série de época que não tem nada que ver com o que se fez no passado. E tem ritmo, humor e uma noção estética que sabe realçar a beleza clássica dos casarões de Halifax e dos seus bosques em redor.
"Se um filme como A Favorita ajuda para que esta série tenha adesão? Acho que não! Mas olhe que sou fã desse filme... A nossa história de amor no feminino não tem nada que ver com o sexo clandestino que vemos nesse filme, em que as personagens nem falam do que estão a fazer. A Anne Lister, pelo contrário, tinha um discurso muito vincado quanto à sua sexualidade. Tratava-se de uma mulher que não tinha vergonha da sua identidade e nunca teve medo de expor a sua masculinidade enquanto mulher! Todos perceberam a relação entre ela e Ann Walker. A Anne Lister era uma mulher ousada para aqueles tempos, embora não fosse ilegal uma mulher poder ter uma relação com uma mulher. Apenas era ilegal para os homens", conta-nos de forma impetuosa.
Por agora, os executivos da HBO vão fazer contas com as audiências e perceber se há vantagens em continuar com esta história e avançar com uma segunda temporada. Os muitos volumes do diário de Lister permitem muito mais histórias e Sally está com muita vontade de voltar a dirigir Suranne Jones (notável como Anne Lister) uma outra vez.
Sally Wainwright realiza, escreve e manda em tudo relacionado com esta série, embora não esteja a olhar para a possibilidade de um dia dar o salto para o cinema: "Prefiro o formato da televisão. O meu estilo pede este formato mais longo. Na realidade, não quero fazer cinema, sempre gostei da televisão. Não sei o que fazia apenas com 120 minutos", diz-nos, sublinhando para já que o seu grande desejo é dar notoriedade a Anne Lister como escritora: "Espero que esta série dê visibilidade à Anne Lister! Se tivermos audiências, as pessoas vão querer investigar os diários dela, que, por sinal, estão agora todos digitalizados e disponíveis na internet."
Ninguém vai levar a mal quando, por estes dias, na net, a série começar a ser batizada como o O Sexo e a Cidade do século XIX, sobretudo por ter a chancela HBO, não obstante Sally achar que a equação entre o melhor da BBC e o melhor da HBO é sempre uma solução positiva: "Quis que a série incorporasse uma certa modernidade e que tivesse um visual que possibilitasse às pessoas sentir realmente o feeling de West Yorkshire, Halifax! E a paisagem é muito importante aqui. A própria Anne Lister era uma mulher do terreno e que geria muito bem os terrenos da família. Queria que os espectadores sentissem a região..."
Gentleman Jack tem tudo para ser um dos casos desta nova temporada televisiva. E tem também o pedigree para na próxima temporada de prémios lutar para Globos de Ouro e Emmys.