Acredita nos valores da cultura europeia, abarcando com isso o progresso ancorado na Ciência, na Arte e no conhecimento. Na verdade, talvez não pudesse ser de outra maneira. Gábor Tompa, 64 anos, encenador, ensaísta, poeta, realizador de cinema, professor, presidente desde 2018 da União de Teatros da Europa, tem nacionalidade romena e dirige, na cidade de Cluj, o teatro húngaro mais antigo do mundo, até porque ele próprio vem de uma família de artistas húngaros, marcada a ferro e fogo pelas tragédias da Europa Central ao longo do século XX. Esteve no Porto para participar no colóquio "Teatros Nacionais: Missões, Tensões, Transformações" e voltará em dezembro para dirigir, no palco do Teatro Nacional São João, um dos textos que mais ama, À Espera de Godot de Samuel Beckett (estará em cena de 10 a 19 de dezembro)..Em 2018 assumiu a presidência da União de Teatros da Europa e foi nessa qualidade que veio ao Porto. Quais são os grandes objetivos da sua direção quando ainda vivemos o impacto da pandemia, tão difícil para os profissionais do espetáculo?.Sinto sobretudo uma grande responsabilidade. Não posso perder de vista que esta é uma associação que celebrou no ano passado 30 anos de atividade, depois de ter sido fundada pelo grande Giorgio Strahler, com o apoio do ministro da Cultura francês Jack Lang. Mas nessa época vivia-se um período glorioso para o teatro, com muita disponibilidade orçamental quer dos Estados, quer do poder local, que, um pouco por toda a Europa, apoiava teatros e festivais. Foi um ambiente que se perdeu com a crise financeira de 2008. Quando tomei posse como presidente, o meu maior objetivo era recuperar um pouco dessa glória passada através da cooperação internacional entre teatros. Encontrei muito bons parceiros um pouco por todo o lado (Nuno Cardoso aqui em Portugal é um bom exemplo). São pessoas muito ativas, que estão a fazer um ótimo trabalho. Temos o projeto "Catástrofe" em que estão a trabalhar 16 teatros, que hão de produzir outras tantas performances baseadas em textos da Antiga Grécia adaptados a situações atuais. Acho que estamos no momento certo para que, depois da estagnação, tenhamos a capacidade de atrair mais teatros e companhias para esta União..Disse há pouco, quando conversávamos antes da entrevista, que nunca deixou de trabalhar durante os confinamentos. Como tem sido este ano e meio?.Foram tempos muito difíceis, até do ponto de vista anímico. Mas fui trabalhando. Fiz Rhinoceros, de Ionesco. Fiz a ópera de Mozart, A Flauta Mágica, no Teatro de Ópera de Budapeste, depois vim a Portugal apresentar À espera de Godot, de Beckett. E foi terrível porque estava eu em Portugal e a minha mãe morreu. Sinto que mergulhei de cabeça no trabalho nessa encenação para superar a dor. Depois fiz duas pequenas óperas de Ravel e estive nos Estados Unidos, onde dei aulas e encenei outra peça de Ionesco. Neste momento, estou a encenar Hamlet, com a minha Companhia..Hamlet, Ionesco, Beckett, é fiel aos clássicos. O que é que estes textos ainda têm para dizer aos artistas e aos espectadores de hoje?.Beckett e Ionesco são provavelmente os últimos dramaturgos a tratar o tema da salvação. É fantástico observar como qualquer pessoa retira alguma coisa de Godot. Todos esperamos por algo em algum momento das nossas vidas: um milagre, uma mudança, alguém. Não é uma peça amarga, está cheia de humor, fala mesmo da importância que têm a solidariedade, a amizade e o amor. De certo modo, encontro esse mesmo sentimento em A Flauta Mágica. É uma história faustiana, sobre a caminhada das trevas para a luz, baseada na consistência e na fidelidade a si mesmo. Isto diz-me muito numa época em que a educação dos mais jovens se tornou muito superficial, sem socialização. Estes jovens arriscam tornar-se robots digitalmente controlados. É aí que o Teatro tem um papel a desempenhar. Na Grécia Antiga toda a gente sabia de cor as histórias da mitologia mas queriam vê-las representadas, embora já soubessem como se desenrolava a história do Rei Édipo ou de Aquiles. Esta experiência do encontro é ainda mais importante nesta época sem diálogo, em que as posições estão extremadas e as redes sociais são tribunas em que se executam pessoas. Mas eu acredito no poder transformador do teatro porque ele é, e sempre foi, o testemunho vivo dos tempos. Temos de estar conscientes que, apesar dos seus defeitos e das suas crises, a cultura europeia sempre se baseou no conhecimento e na ciência. Há que lutar por ela..Veio participar num colóquio que debate o papel dos teatros nacionais. Para si qual é o papel de um teatro como este, de São João onde estamos?.O teatro que eu represento aqui - o Teatro Húngaro na Roménia - é pequeno, mas ao mesmo tempo, é o teatro húngaro mais antigo do mundo, foi criado em 1792. Dirijo-o desde 1990 e o que isso me ensinou é que os teatros nacionais têm a responsabilidade de estar abertos a um diálogo entre a tradição, os clássicos e a modernidade, promovendo novos artistas e tendências..Como é dirigir um teatro húngaro na Roménia?.Hoje é tranquilo, mas nem sempre foi assim. Estamos numa cidadezinha, Cluj, na Transilvânia, onde vivemos tempos muito dramáticos porque já fizemos parte de vários países (já pertenceu à Hungria, depois fez parte do Império Austro-Hungaro, finalmente de Roménia). É a História da Europa Central a funcionar: uma vez, na Eslováquia, encontrei uma senhora de 90 anos que me disse ter mudado de nacionalidade cinco vezes sem alguma vez ter mudado de casa. Em Cluj temos várias culturas: a romena, a húngara, a alemã e a judia..Os húngaros são uma minoria?.Já foram uma maioria, agora somos cerca de 20%. Eu já nasci na Roménia, mas a minha família veio da Hungria. É interessante porque Cluj tem hoje dois grandes teatros e duas óperas, romenos e húngaros..E isso é problemático?.Hoje tenho uma relação muito boa com o Teatro Romeno de Cluj, mas os primeiros tempos não foram fáceis porque os nacionalistas depois da queda do regime de Ceausescu esperavam que, de algum modo, voltássemos à década de 1930 e ao teatro que se fazia nessa época. Boicotavam a nossa programação, com protestos nos jornais e nas ruas. Chegaram a acusar-me de fazer magia negra nos espetáculos. Tudo isso passou e hoje somos a companhia mais premiada da Roménia..Vem de uma família de artistas. O seu pai, Miklós Tompa, já era ator e encenador....O meu pai fundou o teatro da cidade em que nasci (hoje tem o nome dele) em 1946. Ainda estudou com Max Reinhardt e voltou para a Roménia depois da Guerra, embora lhe tivessem pedido para ficar em Budapeste. Também ensinou teatro e a minha mãe, Gaby Mende, também era atriz. Viveram tempos muito difíceis porque a minha mãe era meio judia pelo lado do pai. Por outro lado, lembro-me do meu pai contar que quando começaram os bombardeamentos soviéticos, ficou fechado num bunker com o meu irmão mais velho, então com dois anos. Ao fim de sete dias sem comida, o meu irmãozinho começou a trincar a cara do meu pai, tanta era a fome. Por isso, quando os soldados russos chegaram, foram encarados como libertadores. Como muitas outras pessoas, o meu pai começou por acreditar que o Comunismo traria algo de bom. Creio que manteve essa convicções até meados dos anos 1960. De facto, as coisas pioraram muito após a intervenção soviética na Primavera de Praga, em 1968. Houve uma enorme purga nas artes, as pessoas melhores foram banidas e impedidas de trabalhar. Mas creio que Ceausescu não devia ter sido executado daquela maneira arrepiante, mas sim submetido a um julgamento exemplar. O que não aconteceu porque alguém não quis que houvesse responsabilizações, nomeadamente entre a polícia política. Infelizmente as pessoas não aprendem com a História. A cancel culture está a fazer purgas irracionais. Quando, nos últimos meses, voltei aos Estados Unidos fiquei estarrecido porque alguns alunos se opõem a interpretar Brecht ou Shakespeare, alegando que estes eram racistas ou sexistas. Não podemos aplicar os nossos padrões de hoje a pessoas que viveram há séculos. Isto é uma hipocrisia completa..Mas continua a trabalhar com grande ritmo. É um otimista?.Claro que sim. O desespero é o nível mais elevado de otimismo..dnot@dn.pt