No filme de Wiseman, depois de Sofia e Lev Tolstoi, a natureza é a “terceira personagem”.
No filme de Wiseman, depois de Sofia e Lev Tolstoi, a natureza é a “terceira personagem”.Wolfgang Wesener

Frederick Wiseman: “Os problemas que existem entre homens e mulheres são eternos”

O americano Frederick Wiseman é um mestre do documentário que, de vez em quando, gosta de experimentar a ficção. Volta a acontecer agora com 'Um Casal' (a partir de amanhã nas salas portuguesas), uma evocação de Sofia Tolstoi com a atriz francesa Nathalie Boutefeu - Wiseman falou ao DN, via Zoom, a partir de Paris.
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A sua colaboração artística com a atriz Nathalie Boutefeu começou em 2012, quando encenou com ela uma peça sobre Emily Dickinson. Como aconteceu este filme, Um Casal, em que ela interpreta a figura de Sofia Tolstoi, mulher do escritor Lev Tolstoi?
Somos muito amigos, fizemos essa peça sobre Emily Dickinson e, durante a pandemia, começámos a falar daquilo que poderíamos concretizar em cinema. Ela andava de volta dos diários de Sofia Tolstoi, deu-mos a ler e pareceu-me que havia ali material para um filme. Encontrei também as cartas que Tolstoi lhe escreveu, são muitas páginas, mais de 900... Numa primeira versão, chegámos a um argumento com uma centena de páginas - fomos reduzindo, retirámos muitas coisas, Nathalie acrescentou algum texto e ficámos pelas 33 páginas.

Perante esse volume de texto, qual foi o sentido da sua pesquisa? O que era aquilo que procurava exatamente nas palavras de Sofia Tolstoi e como chegou a essa síntese final?
O que me interessava era, antes do mais, o que ela tinha escrito sobre a sua relação com o marido e a educação das crianças - ou seja, a vida de Sofia e Lev enquanto casal. Além do mais, algumas das cartas dele para ela são ternas, mas a maioria é bastante agressiva. Um Casal  não é um filme sobre Tolstoi enquanto escritor - a meu ver, ele não foi um mau escritor, mas também não foi um grande escritor. Em qualquer caso, o objeto do meu interesse era a vida em família, ou como é que um artista vive, ou pode viver, uma normal vida familiar.

Tratava-se, então, de saber onde filmar...
Exatamente. Tenho um amigo que vive em Belle-Île, uma ilha encantadora ao largo da costa da Bretanha - telefonei-lhe, perguntando se podíamos filmar no seu jardim, tanto mais que estávamos em pandemia e lá não havia problemas com a covid. Visitei a ilha umas três ou quatro semanas antes do início da rodagem e, de facto, o jardim transformou-se na terceira personagem do filme: temos Sofia, Tolstoi e o mundo natural do jardim.

Nesse sentido, a natureza é um elemento essencial do filme ou, mais precisamente, a relação com os elementos naturais.
Para mim, isso era mesmo muito importante. Claro que a ideia foi evoluindo no contacto com os materiais do filme: a partir do momento em que descobri o jardim, a ideia de uma terceira personagem foi-se impondo, porque o jardim representa a beleza dos elementos do mundo natural. Mais do que isso: representa também toda a violência do mundo natural - à noite, os animais estão a comer-se uns aos outros... Dito de outro modo: era importante colocar os Tolstoi no mundo natural.

Não terá sido fácil filmar com as constantes mudanças da luz natural...
Em boa verdade, não houve qualquer problema, tínhamos apenas uma fonte de luz artificial que podíamos usar para um ou outro aspeto. Foi tudo filmado com grande simplicidade: a luz na ilha era realmente espantosa.

Seja como for, Um Casal  é um filme com uma grande variedade de enquadramentos: planos gerais, médios, grandes planos. Tudo isso já estava no argumento ou foi sendo decidido durante a rodagem?
Ambas as coisas. Tinha um plano de trabalho, mas mudava-o com frequência. Por vezes, começava por filmar de acordo com o argumento, para depois experimentar de maneira diferente.


John Davey, o seu diretor de fotografia, disse numa entrevista que, antes da rodagem, lhe perguntou se seria possível filmar esta ficção com a equipa reduzida de um documentário. Foi mesmo assim?
Bem, de facto, não lhe perguntei - disse-lhe que era mesmo isso que íamos fazer [risos].

No filme de Wiseman, depois de Sofia e Lev Tolstoi, a natureza é a "terceira personagem".


E funcionou?
Sim, funcionou! Enfim, para todos os efeitos, a equipa era um pouco maior, já que havia uma script-girl [assistente de continuidade] e dois assistentes de realização - nos documentários, regra geral, não há script-girl  e basta um assistente.


A sua relação de trabalho com John Davey começou em 1978, com o documentário Manoeuvre, sobre exercícios militares de soldados americanos na Alemanha, utilizando sempre a película até uma produção de 2008 intitulada A Dança, sobre o Ballet da Ópera de Paris. Depois, a partir de Boxing Gym (2010), documentando o dia a dia de um ginásio de boxe no Texas, passaram a usar câmaras digitais.O que mudou no vosso trabalho?
Claro que isso provocou uma ligeira alteração no aspeto de cada filme, mas o certo é que na pós-produção e, especificamente, na correção de cor é possível fazer coisas incríveis. No princípio, a minha preocupação decorria do facto de não querer um look digital... mas acabei por perceber que, de facto, isso não era um problema.

Há alguma semelhança com o que acontece com o som, isto é, entre a correção de cor e a mistura de som?
Em termos práticos, são fases que acontecem de modo independente. Normalmente, faço primeiro a correção de cor, usando uma cópia resultante desse trabalho como base para a mistura de som - ainda assim, as questões que se colocam são muito diferentes.


Manteve ou não o seu papel de operador de som, habitual nos muitos documentários que já realizou?
Desta vez não fiz o som. Queria concentrar-me na posição da câmara e na interpretação. Um amigo meu [Jean-Paul Mugel] encarregou-se do som - em todos os meus filmes, foi a primeira vez que não fiz o som.


O que nos conduz a uma pergunta inevitável: para si, até que ponto, ou de que modo, é realmente diferente realizar um documentário ou um filme de ficção?
É muito diferente, sem dúvida. No caso de Um Casal, tudo (enfim, não tudo, diria uns 90%...) foi encenado. Cada sequência foi filmada pelo menos de três ângulos diferentes, por vezes cinco.

Tendo em conta que o título do filme é Um Casal, houve algum momento em que sentiu que poderia necessitar de um ator para interpretar Tolstoi?
Pensei nisso... mas achei que não.

Porquê?
Porque, realmente, o filme é construído a partir do ponto de vista dela.

Na sua perspetiva, há alguma relação entre esse ponto de vista e a situação das mulheres no século XXI?
Do meu ponto vista, os problemas que existem entre homens e mulheres são eternos. Por isso, a minha resposta a essa pergunta é: sim.

Qual é o seu próximo projeto?
Ainda não sei. Tenho estado adoentado - nada de grave, mas tenho-me sentido muito cansado e estou a recuperar. Espero estar em condições de, no verão, voltar a filmar.

É muito interessante observar que fez este filme depois de City Hall (2020), sobre a governação da cidade de Boston, depois participou como ator na produção francesa Os Filhos dos Outros (2022), deRebecca Zlotowski, e realizou ainda Menus-Plaisirs - Les Troisgros (2023), sobre uma família que gere três restaurantes muito bem cotados no Guia Michelin. Como vão acontecendo estas escolhas?
De forma natural. No caso de Os Filhos dos Outros, fui escolhido: sou amigo de Rebecca Zlotowski e ela perguntou-me se eu queria interpretar a personagem do ginecologista - tenho várias participações, assim, em pequenos papéis e é sempre divertido. Tento sempre escolher aquilo que, realmente, me dá gosto fazer; afinal de contas, ninguém me está a pedir para interpretar o Rei Lear!

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